domingo, 4 de março de 2012

MY PERSONAL ILUSIONIST



 Foucault aludia à sua ignorância socrática, essencial, com este dito airoso:"Eu não sei nada de mim: se nem sei a data da minha morte".
É uma facécia e simultaneamente uma palavra avisada, uma espécie de desarme para a arrogância. O desconhecimento sobre a hora da nossa morte é um dos nossos mais evidentes nós cegos. O outro é o termos as costas desguarnecidas. Um paranóico é um periscópio a rodar permanentemente em 360º, sem uma folga na vigilância – um homem que não admite não ter olhos nas costas, nem nas largas nem nas estreitas.
Eu, se pudesse ver simultaneamente, a 360º, sentia-me perdido… Não apenas por tal romper com um implícito estado de suspensão que nos protege – bem definido nesta formulação de Blanchot que me é lema: “Todos os dias há uma coisa para não ver!” – como porque isso destruiria a menor possibilidade de hierarquizar a informação colhida no horizonte visual. É sabido pelo mais distraído dos “montadores” de cinema (que pelo audiovisual foi promovido a “editor”) que não existe “tratamento da informação” sem uma priorização da narratividade; seria o caos, e sentir-me-ia a meio de uma piscina de cinco metros de profundidade, incapaz de decidir sobre o estilo de natação a adaptar para alcançar as bordas.
O que não vemos ordena naturalmente os critérios, e, como ateu, é caso para dizer, Graças a Deus.
A impossibilidade de conhecermos a nossa hora mais grave é o que nos permite surfar na vida sem excessivo drama, o que, se não nos impede de termos uma consciência trágica, nos alivia de sermos congelados por ela.
Claro que as lotarias nem sempre nos agradam e às vezes, secretamente, engendramos os nossos esquemas, damos chaves às nossas superstições, como modo de anestesiar o perigo. Uma vez, num cemitério, no funeral de um tio, tive o vislumbre que converti num poema:
«Uma aritmética danada. Ocorreu-me: a hora /de cada um soa no momento em que a sua soma /de sepultos ultrapassa a dos seus existentes, /simples regulação entrópica. (Ramalhava /um amieiro nas minhas costas.)»
Bem sei que é um esquema fantasiado, que não passa de uma falsificação probabilística, mas o certo é que, desde então, sempre que um amigo ou parente está a finar-se contrato um ilusionista para tornar invisível o corpo moribundo aos olhos do Contabilista Cósmico.
Ao ilusionista, my personal ilusionist, – não digam a ninguém - já arranquei a língua, prevenindo o caso de ser indiscreto, e, claro que, apesar de ser eficientíssimo, não passo o seu contacto a ninguém.
E enquanto me aguento, o felino incrustado em mim lambe um verso de Cesariny que, de forma cabal, me restitui as intensidades da vida: «belo rio sem lágrimas» etc., etc.  

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