domingo, 18 de março de 2012

DIA DO PAI: DYLAN THOMAS E PASOLINI

dylan thomas e caitlin, sua mulher, e uma bela caneca cintilante
Desde que acordei que a Jade me impele a procurar adivinhar o que ela fez para o dia do pai. Já lhe atirei 50 hipóteses e foi puro barro atirado à parede. Mas isso inspirou-me a antecipar o dito, que é amanhã, e a lembrar dois verdadeiros pais para mim, Dylan Thomas e Pasolini, em dois poemas que farão parte do livro que editarei na Abysmo, Harpo Marx na Cova dos Leões. Aqui os deixo:

 LEMBRAR DYLAN THOMAS

No miolo
da sua cabeça reclinada,
os inimigos,
             encontraram o seu leito
sob a pálpebra obstruída,
lavrou Dylan Thomas
uns anos antes daquela tarde
nova-iorquina em que a mostarda
do seu rosto,
                   em 18 uísques duplos,
distraído batimento de remos,
fez navegar prego dentro um coração
                galês.
“Um insulto cerebral”, grafou
o atónito médico
          na autópsia, depois de lhe sondar
no hálito a oxidação das pontes.
Ficou o poeta totalmente da boca para fora,
como despontam begónias
                  e os dias,
        gotejantes e cegos,
e o fogo procura o seu bombeiro.
Da boca para fora, fluido verde
que estoira cismático nas pétalas.
Ao miolo da sua cabeça reclinada
             foram os inimigos
esticar os lençóis
                     e a cama ficou um brinco,
mas só nele, sobrevindo da boca arrefecida,
o silêncio bolsou:
        como o azul
                que se deixa sangrar pelo bote.




CARTA EM MESA PÉ-DE-GALO
                                                                                   para o José Colaço Barreiros

Fiquei enfim, querido Pasolini, saturado
      daquele mundo antigo, das balelas
         de espíritos caducos como as rameiras
  do Império Romano. Foi do que me salvei
  dum expediente que me amolava o espírito
        e o declinava em pára-raios,
             repetindo sem dúvidas velhos
  formalidades, predominações (sabes como
      é proibitivo falar em classes) que sobrepunham
         razões e deuses alheios ao meu ânimo
  secreto, intempestivo. Voltei ao barro,
      ao descompasso clandestino, a uma respiração
           atreita aos ziguezagues de cada dia,
  o que me alarga os horizontes e me não confina
     em moldes. E às vezes uma força eruptiva
         salta aos olhos, provinda do plinto do inesperado
  onde, di-lo Heraclito, conflui a espera.


Ainda ontem tentava explicar a dois esquálidos suíços,
           amedrontados pela pobreza em África
  - this is the middle age, the middle age…-
     que a vida deles sem esse testemunho
           seria um mero palanque declamatório
  e que o martelar nas íris das lancinantes gaiolas
       da miséria, os melhoraria como seres humanos
             implodindo-lhes os belos corais da letargia.
  Mas arrancar suíços à previsão dos mecanismos,
     à sua comedida, meridiana torpeza? Mostrei-lhe
           o matutino, onde se lia: «Em Neuchatel, suíço
  rapta crianças de dois anos para as devorar».
      The real return of the middle age, repliquei.
           Não acreditaram, e coléricos pretendiam
                ter sido a notícia inventada por um jornalista de mal
  escarificado na alma. Peut-être. No circo romano,
       a barbaridade espirra pedras pelos olhos.
            Porém, crer que o Bem é simétrico ao progresso
           das nações é uma ingenuidade que decapita mitos.

E voltaram ao hotel, de olhos fixos no viés amarelo,
     temendo encontrar pelo caminho uma trupe de canibais.
  Como explicar a espíritos tão arreigados
    ao decoro, aos impostos, que há uma poética do sujo,
         que a vizinha circunvalação do trágico levanta
  dos escombros as magnólias, o prazer que unge
      numa pequena conquista, e que o urbanismo,
             o vero, é cosa mentale? Necessitariam
                   os filhos do conforto, escoltados
  pela gadanha da História, de ter nascido nas faldas
      de Friul, como tu ou de escorpiões pontapeados
  por pastores, como eu, para descortinarem
  que por detrás dum sobressaltado
      e férreo desajuste do destino cada vida impõe
           uma feraz alegria que a resgata,
  aos alicates da estatística. Tinha comprado um honesto
  vinhito sul-africano para partilhar com eles –
        mais fica. Deixemos os juízos aos janotas,
  tique-taque, tique-taque, tique-taque, e
  sozinho deglutirei as lágrimas de riso de Lázaro.


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