E, selenita, cai assim de pára-quedas um livro, sem peias nem poias por peso, e sem resguardo prosódico, estratégicas ou tácticas estilísticas. Porque sim – no transe da beleza convulsa de que falava o Breton. E em contra-mão, em contra-mão.
Má Raça.
Eis um livro de que o Cesariny gostaria, um daqueles que toma por tábua de engomar o refinado lirismo dominante, disposto a não ser vítima de nenhum tipo de unanimidade - ou se agarra ou se odeia. Má Raça. Só por isso, em tempos tão ulcerados, merecia a taça – interpela, grama-se, irrita, adora-se. E, veja-se o desplante, tudo servido em lençóis de seda que se conspurcam com o mênstruo, o esperma, gotículas de vinho e urina. Lugares de devassidão e paródia, como se anuncia neste poema:
«soutien que sustenta
brutas melancolias a dias
morre tu em Tebas
se preferires os clássicos
e deixa-me seguir-te
no descer em piano das colinas
em direcção ao alto mamilo erecto de
são joão»
que se dá a ler numa galvanizada ironia, que funde o popular e o erudito, na secreta respiração boca-a-boca que é a da arte que não se distrai da vida.
Em primeiro lugar é fascinante a atitude do escritor, vermos como o Cotrim, depois de um ror de publicações, se atira ao bofe com o ímpeto suicida, a espontaneidade de um puto de 20 anos; e se vaza num fluxo verbal que escangalha normas e mandamentos epocais quando ao que deve ser a poesia e nas tintas para o que se considera suportável num poema, em matéria ou forma. Ele quer é cuspir o verbo, acção que amiúde se repete nestas páginas que agem sobre nós, leitores, como o gume, lucilante e afiado, a que queremos emprestar uma bainha.
22 Canções, onde as palavras dialogam no plinto das imagens de Alex Gozblau, enérgicas, alucinadas, cruas e agoirentas, como a música de Adolfo Luxúria Canibal, que assina o posfácio.
A capa (o curto-circuito entre a imagem e o título) dá o mote: como voltar a restituir o sangue, a pulsação, o êxtase, a um corpo morto?
É da vida (ou da ausência dela) que se fala, da poesia (ou da pasteurização dela, a que se reage), do furor que se tornou contrito. Os académicos vão odiar, os leitores de «bom gosto» vão ficar divididos, setenta por cento dos poetas vai estranhar, adivinho que vá ser um livro comentadíssimo, até no silêncio.
O seu aparecimento é como um rasgão na cultura poética actual, mergulhada no caldo homeopático de que falava Schoenberg quando lastimava: «Desde que os músicos são gente cultivada, não existe mais ninguém para ‘falar música’». Olhem, como Arp, que ‘falava pombo’, e ressuscitaria o cadáver da capa.
Má Raça rejeita, portanto, os princípios tonais da poesia que está na crista e, ao contrário desta, não investe na dialéctica espectacular de crise e ultraje que faz o pleno do cinismo contemporâneo. Prefere o grotesco, o desarme da alegria, o grito, a associação livre, ao raciocínio claro o ludismo desconstrutor, o humor («o soneto dos palcos de bolso/ saia e casaco/ saiam», 34) e mesmo ciente de que tudo são máscaras:
«agora que o labirinto pede em casamento a mão
da cortina de embustes na mais real simulação
supremo ziguezague dançante
das próteses»,
como se lê em Obsessão, a canção de Abertura, Cotrim não desfalece na busca de contacto, da abertura ao outro, dessa energia trasladada em, ainda que não permeada de sossego:
«falas do mundo
ao ouvido leitoso da braguilha
oiço
eis o que sussuras:
(seio seixo seiva)
nenhum oceano pode ser pacífico».
Esta crença de um contacto, mesmo que num oceano nada pacífico, é o que leva também a confiar na inteligência do leitor e à aposta de uma poesia de «liberdade livre» intempestivamente inactual:
«Nunca antes
da melanoite
esmaga o trocadilho pelo riso
erguendo copo que não aviva a
chama
por mim saxofone amachucado
reza
a noite
tu o descobriste
faz-se fundo de camisas enxovalhadas» (pág. 46)
Aparentemente nenhum sentido absoluto conduz estes versos/partículas para um plano/mensagem comum ou agregadora. Por esta razão, o poema oferece-se à colaboração associativa do leitor. E claro que, se o poema surde da contaminação expansiva da imagem de Alex, só se completa no espírito do leitor.
É preciso aceitar o jogo. E num tabuleiro destes, é um gozo.
Alto. Uma galinha sai debaixo do Pajero estacionado a três metros da esplanada em que me sento. Vem uma tia de capulana, agarra-a com a facilidade de quem a hipnotizou de nascença e, à falta de melhor instrumento, dá-lhe com o tijolo em que se sentava na cabeça. Lá vai a ave, trespassada a alma, sob o sovaco do comprador, a gotejar sangue. Ao meu lado, uma criança, impassível, boceja e depois exige à mãe, quero uma tosta mista. O Alex e o Cotrim adorariam esta simultaneidade trágica-cómica. Terrível como aquela passagem onde Zaratrusta lembra que «para ser a criança que volta a nascer, para ser isso, o criador tem mesmo de querer ser também a parturiente e as dores da parturiente».
É o que me lembra este livro: a experiência da parturiente, e as suas visões na dor que são o trânsito para a mais excelsa alegria.
Peço outro café, reabro Má Raça. Leio:
«As nuvens foram coladas com fita
palco de teatro suspenso no terror
e nisto de ventos não anunciados
soltas o cabelo polvo
de modo a encher a noite de cata-ventos
puxando pelo peso o gesto pluma
a pisar sem esforço o horto inútil
escalando o amanhecer dos mapas reunidos e
amarrotados do sorriso
ofensa e desafio.
Os nimbostratos deixaram-se ficar quedos.»
Tão forte e tão simples, culto e despojado como é predicado de poucos, desarticulador ao ponto de lembrar uma colagem, mas com um particular sentido cénico que nos devolve às emoções.Má Raça. Eu quero este livro para mim.
Má Raça, que raiva não o ter escrito.
Que bom ser do Cotrim, este livro inesperado, em que os instintos não estão clivados.
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