domingo, 18 de março de 2012

ALEGRIAS DA DIALÉCTICA. TEORIAS

pollock
Com a limpeza, a inteligência de sempre, o Henrique Fialho fez um belo texto sobre Teorias, do manuel a. domingos.
As dúvidas, ou os incómodos, que o livro – de que gostei de facto - me levanta são também as minhas e acho que o texto do Henrique me responde a algumas e recomendo-o vivamente.
Gosto particularmente deste trecho:
«Não sendo contemplativa, a poesia de manuel a. domingos é quase narcisista. Ilude-nos com a sua auto-ironia, rasteira-nos com um cinismo natural, deixando-nos caídos e desarmados perante uma essencialidade que a vida nos obriga a negar sob pena de parecermos superficiais. Mas a verdade é que somos, não podemos fugir a isso como da morte foge um ser vivo. As teorias tocam na ferida com a sua voz silenciosa, depurada, objectiva, directa, crucial. Arrumadas em jeito de tratado, com direito a bibliografia e tudo, as teorias aqui apresentadas resumem uma atitude, um modo de estar e uma perspectiva que enjeitam o lirismo expressivo de muita da poesia portuguesa actual, fugindo de conotações e de rótulos tanto à esquerda de um confessionalismo urbano-depressivo como à direita de uma metaforização académica do mundo. Falar de simplicidade não é suficiente, pois a simplicidade carrega demasiada complexidade no imo do corpo.»
Só não concordo com três coisas no texto, a referência ao Fernando Guerreiro, a partir do título, exactamente pelas razões que o próprio Henrique aponta de uma disparidade absoluta entre as pulsões poéticas de ambos, penso que a coincidência do título o não justifica (pelo menos à partida, teria de reler o Fernando); quando o Henrique falando de minimalismo (ele é evidente) chama o Carver à liça, porque simplesmente gosto mais da poesia do manuel a. domingos que da do Carver, que, na minha opinião, se realizou plenamente como poeta nos contos, mais do que na escrita de poesia; por último, quando sente necessidade de afastar o fantasma da suposta «simplicidade» como se esta lhe tivesse sido apontada como um estigma, enfatizando «pois a simplicidade carrega demasiada complexidade no imo do corpo».
Claro que sim, e por isso chamei a atenção para o olho dramatúrgico que existe na poesia do manuel, o que afasta qualquer facilidade (esta sim, grave), querendo com isso insinuar que cada palabra ali estava tomada pelo seu devido peso na economia do poema e não meramento por jorro, o que subtilmente abre/orquestra vários níveis de leitura em alguns poemas, o que aliás é bem anunciado pela simultaneidade que o manuel ensaia no poema que abre o capítulo «Teoria dos Dias Comuns», e que o Henrique e eu citamos e que volto a lembrar: Uma mulher/ grita/ contra um gafanhoto//Uma criança/ mostra/ um desenho ao avô//Uma andorinha/ faz/ o reconhecimento//dos telhados.
Depois do texto do Henrique, quero precisar duas coisas e dirijo-me ao manuel mais directamente:
todos os textos que faço sobre a poesia de outros são leituras com, reflexões que me ajudam a pensar ou a tactear porque nem sempre vejo claro, e não pretendem ser nem críticas nem juízos definitivos - sou veemente a cada momento, mas não cristalizo nisso. E costumo auto-definir-me como um «pateta em aberto» e daí que nada me custe voltar atrás, ou muito simplesmente me alegrar quando uma leitura mais justa de algo se sobrepõe à minha. É o caso da leitura do Henrique, em alguns aspectos, o que só me deixa contente pois gabo-lhe há muito a inteligência.  
Em segundo lugar, e quanto ao cinismo - («rasteira-nos com um cinismo natural, deixando-nos caídos e desarmados perante uma essencialidade que a vida nos obriga a negar sob pena de parecermos superficiais», escreveu o Henrique e muito bem), que no teu livro tem um grau de potabilidade e um tenso equilíbrio porque ainda se situa no plano da ironia  (duma saborosa auto-derrisão), e em Teorias predomina um patente gosto pela vida -, confesso que me espanta que de repente esteja toda a gente no inferno e que só o cinismo torne a vida suportável. Por mal que esta merda esteja em muitos quadrantes, e garanto-te que eu vivo literalmente num meio infernal…. E falo também por mim, pois em muitos textos sou de uma auto-derrisão (e dez anos já o António Guerreiro chamava a atenção para isso nos meus poemas) que roça uma auto-complacência invertida. Compreendes a minha questão? Acho que às vezes este tique é o mais fácil, mas nem sempre o mais certo, e que apostar no contraste, como acontece no jogo do teatro, pode iluminar melhor a objectividade “directa e crucial”. Por deslocação, como nos sonhos. E julgo que nos ajudaria muito voltar ao Nietzsche e interiorizarmos a sabedoria trágica, que nos faz “aceitar” as trevas e o riso da vida, a alegria e a dor, e todas as intensidades num balanço homeopático, sem que estas tenham de ser dicotómicas ao ponto de nos deixarem um travo amargo que nos faça “escolher” uma perspectiva “cínica” da vida, que é apenas e afinal apenas um lado do jogo.
É isto em que acredito, não me passa pela cabeça que tu não possas diferir de mim – cada um rema consoante as suas circunstâncias e experiência de vida (falo da experiência em si e não da idade).
Foi deste risco - repito, também me calha a ironia e o cinismo - que quis falar e se calhar não soube explicar-me. Guardo sempre esta hipótese como segura. 
E se não ainda conheces volto a aconselhar-te a poesia do António Reis, um minimal antes de tempo. Um abraço.       

Sem comentários:

Enviar um comentário