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Batíamo-nos os dois aos últimos espargos da mesa. Eu acabei por ceder:
- Face ao teu corpanzil, compreendo que não só és o homem de todas as mulheres como o espargo de todos os homens...
Há anos que ríamos juntos, em jantares esporádicos mas animados, onde discutíamos literatura, mulheres, o desassossego do mundo. Era um dos escritores mais badalados da cidade e tinha a vivacidade de quem nunca perdeu o arreganho campestre para acomodar a terra ao saxo, convertendo-a, apesar das geadas ou da seca, aos seus humores.
Estávamos num encontro internacional de escritores, hospedados no mesmo hotel, e o quarto dele ficava entalado entre o meu e o do meu editor, um homem mais velho, com fama de ter sido um arame inexcedível nos lençóis. E com quem eu precisamente almoçava, deleitando-me com os seus desacatos amorosos na Terra do Fogo, em companhia de um dos seus autores chilenos.
A espaços, admirávamos a beldade que acompanhava o “comedor de todos os espargos”, uma elegante delegada de propaganda médica, segundo as fontes de Aníbal, o meu editor, que – dizia - tinha as pernas no mais fundo dos seus olhos.
“Hás-de aprender muitas coisas sobre as pessoas, se dedicares o melhor da tua atenção às coisas irrelevantes, aquela malha na coxa dela, por exemplo ...”, era uma das máximas preferidas de Aníbal que, se fosse peixe, seria um lúcio por causa da vaidade dos bigodes.
A tarde correu bem, as palestras fluíram sem altercações de maior entre os participantes e a tarde caiu com a desidratação do costume. Mitigada em alguns whiskies temperados de histórias de valdevinos.
O jantar esteve sem gás, até porque a mexicana que me interessava não compareceu.
Trocadas ao serão algumas histórias mais melancólicas – o álcool apertava – chegou a hora da deita. E foi aí que tudo começou.
No pequeno-almoço as olheiras arregalavam os olhos caídos. Foi o Aníbal quem abriu as contendas:
- Você ouviu, hoje? Toda a noite, até aclarar.
- E desceram comigo no elevador, frescos como alfaces.
- Sempre que me sentar no Gijón em Cáceres para comer jabalí a la plancha hei-de lembrar-me desta noite e do gabiru, que é da mesma raça...
- É um feroz concorrente, ó Áníbal... - provoquei eu.
- Paz à minha alma... eu já estou como o Buñuel que aos sessenta rejubilava, “Graças a Deus que me livrei da tirania do sexo!”... – e, num sussuro eivado de malícia, inquiriu – Mas você está interessado em dormir hoje, Valdemar?
- Se lhe parece...
- Então... – continuou sorridente – lá para o meio-dia, depois das camareiras terem dado a volta aos quartos, eu retenho-os aqui e você...
Foi um fartote a imaginar a cena.
Aníbal distraiu-os e eu subi ao quarto dele, cuja varanda geminava com a do casal em núpcias. Dividia-as um murete, ultrapassado sem dificuldade.
Como ele havia previsto, com a sua sabedoria de sátiro, a porta para a varanda estava semi-aberta, no fito de ventilar o cheiro a sexo.
A cama estava feita, o que permitiria que a surpresa fosse total. Abri o lençol e o cobertor cuidadosamente, dobrando-os num ângulo perfeito de 45 graus, e espalhei o cardo esmagado que havíamos colhido na duna entre o hotel e a praia. Repus o lençol e o cobertor na mesma arrumação em que os encontrara e sentei-me sorridente, a imaginar a cena.
Foi aí que dei pelo gravador, que estava na mesa-de-cabeceira. Tinha uma cassete. Não resisti a carregar no play.
Passei a cassete a Aníbal que, nessa tarde, foi comprar um “tijolo” de propósito.
E à noite pôs a cassete a tocar, na função repeat. Os gemidos e murmúrios do acto amoroso invadiram o corredor.
Na manhã seguinte encontrámos o casal, esmaecido, à entrada do bufet. Provocação do Aníbal:
- Tem um ar fatigado, Artur, não me diga que passou a noite a exercitar a métrica...
Cora o outro, num sorriso agastado:
- Eh pá, você não me deixou dormir.
Olá António
ResponderEliminarExcelente o que escreve.
Logo mais vou aderir ao seu blog, agora estou à pressa para ir trabalhar.
Visite o meu blog e dê-me a sua opinião se considerar que vale a pena.
Um bem haja para si
MariaJB
http://poesiamariajb.blogspot.com/