terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O ESTRANHO CASO DAS CAMAS VOADORAS

a vila olímpica
Hoje acabei uma dolorosa revisão de mais um livro de Direito, desta vez com quinhentas páginas, num tu cá tu lá com uma linguagem que odeio, ainda para mais num país onde a lei positiva está abafada por incúrias e atrapalhações estruturais - e muitas vezes não passa de um travesti da lei costumeira (esse eufemismo que dissimula o entorpecente domínio das tradições mais retrógradas) - e pus-me a pensar que só seria mais doloroso se fosse médico e lesse no corpo das crianças o espúrio, mesquinho, trabalho da morte.
Mas hoje fiz um intervalo, tirei os pés dos sapatos, e os dedos harpejaram o ar e decidi ir à rua beber o café e ler um jornal. Acho que era o Hegel que contava aquela anedota sobre os judeus na qual Jeová lhes dava a escolher entre a Salvação “já e agora” e uma coisa “organizada no tempo”, arrastada, mas compensada com a leitura do jornal diário - e os judeus escolheram o jornal.
Nem sempre me sinto muito judeu, ao contrário de grande parte dos meus amigos jornalistas sempre preferi um livro a um jornal ou revista e não faço qualquer esforço para ter em todos os momentos televisão por cabo, mas de vez em quando sabe-me bem lavar os olhos na actualidade.
Decisão santa. África oferece-nos um panorama que chega a ser deprimente para o escritor porque a realidade ultrapassa sempre a imaginação, por mais delirante que seja. E a deliciosa história de hoje foi esta:
Em consequência da vila olímpica que se construiu de propósito, nos arredores de Maputo, para acolher os atletas que vieram participar em Setembro na última edição dos Jogos Africanos, terminados os jogos desportivos, ficaram 518 apartamentos para serem distribuídas em sorteio pelos jovens. O que parecia uma boa medida foi assombrada por dois factos controversos: o custo exorbitante dos apartamentos, numa especulação pura do Estado em relação a um parque imobiliário que lhes foi em grande parte oferecido, e as regras de candidatura às casas, que discriminava quem não fosse do partido Frelimo.
Mas a novidade, e que foi denunciada esta semana, ultrapassa a imaginação: à feitura dos contratos, os jovens, visitando os apartamentos, deram conta que a maior parte do mobiliário havia desaparecido misteriosamente dos 500 apartamentos. E o preço que haviam acertado para a compra da casa abarcava o mobiliário, que lhes fora garantido existir.
Lê-se no Editorial do semanário Canal de Moçambique:
«… o paradeiro do mobiliário adquirido para equipar os apartamentos da vila olímpica está em parte incerta. Certamente que as mesas, cadeiras, televisores, camas, armários e outros equipamentos que havia nos apartamentos para os tornar habitáveis não se evaporaram. Alguém os retirou de lá. O que resta é saber quem os retirou e para onde os levou e que é feito dessas coisas (…) Esses bens foram, ao que tudo indica (...)parar em mansões de dirigentes, segundo esquemas obscuros. (...)
O Estado contraiu um empréstimo de cerca de 152 milhões de dólares, concedidos pelo governo português para a Vila Olímpica. Esse dinheiro será pago por moçambicanos vivos e outros ainda por nascer. Por isso é um imperativo democrático, é uma obrigação o Estado respeitar o princípio da transparência para que não se fique a pensar que o nosso Estado está na mão de gatunos.(…) diz-se que o mobiliário da Vila Olímpica foi entregue à Direcção Nacional do Património, no Ministério das Finanças, mas lá não está. Onde foi parar? (…) Já o ano passado o Tribunal Administrativo denunciou que o património do Estado que está no ministério e noutras instituições geridas pelo Governo, não está registado na Direcção Nacional do Património. Desde viaturas protocolares de ministros aos mobiliários, nada consta do inventário do património do Estado depositado na Direcção Nacional do Património. Foi uma denúncia feita em documento oficial, precisamente no relatório e parecer da Conta Geral do Estado.»
Está tudo dito. Eu volto aos apuros finais da minha revisão. Triste e umbilicalmente risonho.



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