michaux, plume |
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Para o Leonardo da Vinci a mão pensava, no exactíssimo sentido em que para muitos compositores a orelha criva de sons e harmonias incriadas a mente do compositor.
Hoje fui entregar uma revisão e no gabinete do editor, na amena cavaqueira de sempre, dei conta que o ar condicionado me despertava o reumático na mão. Uma moinha que aparafusa, contínua, com a avidez do mais álgido fungo.
E estou a ouvir o meu amigo e já a pensar noutra coisa que aos olhos de muitos será vulgar mas que em mim retine como uma campainha mágica:
o Henry Michaux sofreu de uma feroz osteoporose na mão aos 56 anos, que a tolheu, tendo-o feito descobrir, a expressão é dele «o homem esquerdo». Ora não há coincidências e o esburacamento ósseo da mão daquele que é para mim um dos definitivos poetas do século XX só pode ter sido uma vendetta do sistema ósseo sobre uma mão que sonhava demais.
O Michaux foi dos poucos que fez vários transatlânticos trespassarem icebergs sem haver conhecimento de um único naufrágio.
Mãos mais articuladas que as pálpebras de deus.
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A Ana Cristina Leonardo, jornalista e crítica literária, a pena muitas vezes lúcida da Meditação na Pastelaria, uma intelectual a quem move a transparência de nunca ter gingado à procura de consensos e tem uma opinião forte sobre quase tudo (ela não se inibe de querer-se o contrário do “pensamento débil”, coisa a que sou mais atreito), escreveu há uns meses uma coisa no seu blogue a que sempre pensei responder.
Acontece que não tinha o livro em casa e portanto só me podia apoiar na minha fé, o que não é argumento suficiente contra a Cristina (e tem razão), pelo que tive de esperar que me devolvessem o livro.
Foi ontem, o livro é os Cem Anos de Solidão, e pude finalmente reler umas páginas enquanto digeria o que ela havia escrito, onde se dizia, preto no cinzento, pois cito de memória, que o romance do Garcia Marquez não havia resistido ao tempo.
Estamos em desacordo. Explico porquê, e só me vou ater à primeira página do livro, que me dá os argumentos suficientes.
O livro começa com a célebre frase que toda a gente conhece: «Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.»
Poucos inícios são tão fortes, a) pelo contraste entre uma situação sumamente grave e uma evocação aparentemente tão irrelevante – como se o Buendía tivesse o sentido das proporções avariado e não houvesse nele, estranho para um militar, o mais breve resquício duma noção de hierarquia na narrativa de uma vida, e todos os signos se equivalessem; b) pela metonímia que trepa sentido anexo até se converter numa metáfora estonteante e quase invisível e que é introduzida pelo gelo: a morte é uma congelação.
Quando Buendía se recorda, já está morto.
É difícil fazer melhor.
Continua o parágrafo:
«Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos.»
A transparência das águas é traduzida pela lente que amplia o tamanho das pedras: quando nós vemos os ovos pré-históricos deixamos de ver o fluido que as permeia, o efeito da transparência está genialmente plasmado. Em literatura não se pode fazer melhor.
Todos os anos, pelo mês de Março, chegavam os ciganos e as suas maravilhas. A primeira maravilha que levaram a Macondo foi o íman. Mas antes lê-se:
«O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome e para as mencionar era preciso apontar com o dedo.»
As coisas sem nome são coisas sem vínculo, sem o elo que instala o circuito entre as pessoas e o acontecimento das coisas que as torna partilháveis, empáticas. O que o íman magicamente provoca.
Portanto, o aparecimento do íman não é mais um efeito fácil, não está ali posto ao acaso mas é compelido pela necessidade diegética, é a sua transposição mais orgânica.
Vejamos agora a apresentação do primeiro dos protagonistas da narrativa, Melquíades:
«Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal dos telhados…»
Esta descrição, sobretudo a das mãos, ainda que o adjectivo ferino transmita de imediato algo de diabólico (porque indomável) à personagem, vaza de imediato o carácter da personagem: tão simpático e saltitante (isto é, errante), como sedutor e capturador (no sentido em que torna seu tudo o que toca, com inexplicável beneplácito dos demais, como se fosse a serpente que hipnotiza os pássaros). Síndroma de Estocolmo se chama ao efeito que o Melquíades exercerá sobre a comunidade.
O que leio na segunda metade da página faz-me crer que, por um lado, como até aqui, não haverá uma palavra só no romance que não esteja enganchada num sentido posterior no romance, e por outro, pode haver uma leitura gnóstica do romance, o que inscreve no seu cerne uma pluralidade de leituras, para além da do gozo imediato da trama.
Se isto não são sinais de um enorme romance, não sei o que seja um romance intemporal.
E só falámos da primeira página.
Não creio que quem esteve anos ao rés da miséria (como saberão, o Garcia Marquez quando acabou o romance nem teve dinheiro para mandar o manuscrito inteiro para o editor, só lhe restando dinheiro para o selo correspondente a metade do peso que tal representaria, isto é, só mandou metade do romance) para acabar um livro ceda a falhar uma palavra, a meter numa página que fosse um sinónimo qualquer em vez da única palavra necessária à tessitura.
O que torna a sua malha absolutamente responsável.
Por isso não creio que se possa dizer que o Cem Anos de Solidão tenha envelhecido.
Quem envelhece é o leitor, pá!
ResponderEliminarAntónio, não sabia que tinhas polemizado comigo. Mas talvez Os Cem Anos de Solidão sofram do mesmo mal que atacou as flores do Van Gogh reproduzidos ad nauseam nos calendários, sem que nenhum deles tenha culpa (nem as flores nem o Van Gogh). De qq forma, nunca disse que não havia frases belíssimas no romance. Disse que, enquanto romance, ele tinha envelhecido (o que não é o mesmo). Mas talvez o comentador anterior tenha razão e tenha sido eu a envelhecer. Ou as duas coisas. De qq das formas, prefiro, sem margem para dúvidas, a contenção de O Outono do Patriarca. E abstenho-me de invocar o Borges.
ResponderEliminarEnganei-me, queria dizer, Crónica de uma Morte Anunciada.
ResponderEliminarEnvelheci mesmo.
de facto estava a intrigar-me, pois o Outono do Patriarca é para mim o livro dispensável dele.
Eliminara despropósito, não polemizei, conversei contigo, e, para teu sossego,eu envelheci mais.