quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

DEUS, QUE COCKPIT?

mark rothko

Não sou cristão, pois não basta ter sido baptizado para assumir uma tal condição – isso é a grande falácia do condicionamento político ou do catolicismo, que têm estado demasiadamente em fusão. Mas não prescindo de uma certa “espiritualidade” (detesto a palavra) e de alguma reflexão sobre isso. Aqui deixo uns apontamentos.


                                                                                                                      para o Rui Almeida 

A vida enxameia-nos o caminho de paradoxos, e muitos são lá postos para nos divertir. Como o de sacar a história que reproduzo em baixo do livro de um brilhante ateu confesso, Xavier Rubert de Ventós:
Havia um monge budista famoso pela sua imensa sabedoria, que o ancorara num silêncio inviolável. Todos os noviços do mosteiro respeitavam e reverenciavam o seu silêncio, mas, cumpridos os 85 anos, ao verem que declinava a sua saúde, decidiram pedir-lhe que, enfim, falasse.
- Explique-nos, antes de morrer, o que em todos estes anos haveis aprendido e      contemplado. Não vos ides sem deixar-nos uma pista que nos ajude no estudo e nos oriente a contemplação.
E o ancião, respondia a tudo com um sorriso e continuava mudo. À medida que a sua saúde se ia debilitando, a impaciência crescia entre os noviços. E cresceu ao ponto de, no leito de morte, os noviços desatarem aos berros à sua cabeceira, de o ofenderem inclusive, na súplica de uma sílaba do seu tesouro espiritual.
- Não sejais egoísta e cruel! Para quê levar consigo tudo o que haveis acumulado e que pode servir-nos como luz e guia.
Mas o ancião continuava silencioso, imperturbável entre os jovens que começavam a maltratá-lo. E foi só no momento de exalar o último suspiro que soltou uma palavra, a sua única palavra:
- Fogo!
E o mosteiro começou a arder.
Afastemos a hipótese do incêndio ser uma expressão metafórica – o mosteiro ardeu até aos caboucos.
Instaura-se aqui um outro nível, no qual a palavra deixou de ser o interruptor que acciona uma certa tensão metafórica e passa à ordem da experiência, a um acontecer literal, fogo posto que actua como um revertor de escalas e de natureza, na atenção e no fulcro.
O que obstrui as fantasias de uma prática ao alcance de todos. Alcança quem pode – embora se deva abstrair aqui a fantasia inversa, que é a de supor que existe neste movimento um suplemento de heroísmo. Depois do fogo não fica uma trave a que se agarre o ego.
E como sabiam o velho monge e Wittgenstein, que cito, a experiência é intransmissível: «Os filósofos que pensam ser possível fazer, por assim dizer, no pensamento uma extensão da experiência, deveriam pensar em que é possível transmitir uma conversa, mas não o sarampo, por telefone».
Está por Cratilo quem pode, está por Sócrates quem pode. Ambos têm razão.


«O segredo é a possessão na unidade, não a perda na unidade. Deus e o homem, o mundo e o Além, devém Um quando se conhecem um ao outro. A sua divisão é a causa da ignorância, da mesma forma que a ignorância é a causa do sofrimento»: foi necessário ter lido este aforismo de Shrî Aurobindo, a oito mil metros de altitude, a caminho da Índia, aos 38 anos, para me reconciliar com uma hipotética ideia de Deus. Já não o acuso, novas grelhas de leitura corrigem-me a sua acção trágica.
E aos 47 anos perdi o receio de declarar que apesar de rejeitar o modelo do catolicismo participo pelo menos da crença que alguma «tradição hermética» sugere e que alude a «um segundo nascimento» do homem e a uma dimensão da História entendida de forma kairológica.


Na adolescência e nos primeiros anos de adulto, caldeado por uma propensão libertária, era absolutamente contra o casamento. Aos vinte e seis aceitei casar-me dando como certo que se o amor não merecia o sacrifício de todas as leis, inclusive as próprias, então decompor-se-ia na sua insignificância. Era uma intuição. O casamento quis contrariar-me e regurgitou-me ao fim de ano e meio.
Na Índia, dez anos depois, no pico de umas fragas onde se situava um templo a Shiva sou fintado pele breve diálogo com o brâmane responsável por aquele espaço sagrado – conversa que reproduzi assim que cheguei ao hotel:
«Sorrindo sempre, o brâmane pega-me de caras:
-       Você tem um olhar límpido, magnífico.
Desmancho-me, num sorriso. Andar vinte horas de avião para ser desmascarado logo à primeira, pela vaidade. Não sei como responder e anuo:
-       Obrigado.
Mas as surpresas não se ficavam por aqui:
-       Estou pronto.
-       Pronto?
-       Pronto para ir para qualquer lugar.
-       Não percebo.
-       Pode levar-me consigo que eu trabalho em qualquer coisa, sou um bom técnico.
-       Um homem dos sete instrumentos?
-       Yes. Lisboa fica muito longe de Copenhague?
-       Três mil quilómetros.
-       É longe, mas não faz mal, estou pronto.
-       Você é um «padre». E os seus fiéis?
-       Shiva está no coração. E estou farto de calhaus. Dá-me um Classic?
Faço uma pausa para digerir a catadupa de contrasensos e lamento:
-       Não posso levá-lo, homem. Já tenho filhos, muitos filhos, seria mais...
-       É como o excesso de bagagem não é? Peso a mais. É uma estranha forma de classificar uma alma, mas compreendo... Um talkman, ao menos um talkman não terá a mais?»
Pedia-me o gravador. Fui incapaz de não lho dar, com uma cassete de Arvo Part lá dentro. Que desdita a dele e nossa, que na limpidez daqueles ares esperávamos por uma palavras de mestre, por uma sílaba entremeada de sublimidade!
Anos depois, relendo a Bhagavad Gita descubro uma passagem onde Krishna, depois de ter longamente analisado com o seu discípulo Arjuna os princípios que comandam o «yoga da acção» e lhe ter explicado que «aquele que age conforme a sua natureza atinge a perfeição», segreda no fim ao seu discípulo: «Desapega-te de todas as leis...», após o que acrescenta: «Simplesmente, esta palavra nunca a digas a aqueles que são sem obediência e sem devoção».
Estas últimas palavras dão conta do carácter moral que subjaz ao conhecimento – na medida em que aquele que não já necessita de recorrer a qualquer autoridade para validar a efectividade da liberdade que experimenta aceita ainda o rito, essa garantia exterior, como penhor humano -  mas o que me interessa sublinhar é que a comunhão com a plenitude se realiza apesar do próprio e ao arrepio das suas leis. Percebi então que havia agido bem ao casar-me contra os meus princípios e que aquele brâmane que eu na altura verberara como um “desertor” e uma vítima da voragem consumista que ameaça desvirtuar a Índia era afinal uma criatura livre e de uma intensa lucidez.


O meu pai habitava um anti-clericalismo tão subtil que, após uma insistência sem esmorecimento de minha mãe, me deixou ir à missa com a minha tia surda. Sem querer, esta insólita concessão – a minha tia surda não acedia directamente à Palavra, o que disparava em mim um Sherlock Holmes obcecado pela charada da dádiva  – levedou-me O Mistério.
Durante anos, pensei que a Fé me fora vedada por aquele exercício de ficar a admirar a resoluta concentração de minha tia num ritual em que a comunicação (pensava eu) estava para além das suas possibilidades físicas, mas afinal o mistério da Fé polinizou-me pelo negativo, como se fosse o molde de gesso duma estátua. Hoje, o esforço da minha habilitação à palavra justa corresponde à busca do nervo da Palavra no forro desse negativo.


Há duas provas irrefutáveis da presença do sagrado na vida: o compromisso das endorfinas – substâncias segregadas pelo próprio corpo para assegurar que as suas operações se realizem sem dor e cuja ausência tornaria impraticável e doloroso o gesto trivial de levar um copo de água à boca –
e o facto da existência ser tão perdulária.
Prosseguir este trilho de uma opulenta generosidade é uma tarefa árdua e sem abrigo, pois é difícil fazer aceitar aos demais que o verdadeiro “lucro” pode não ser económico.


Que rosto dar a Deus? O de uma emoção partilhada, o de o terceiro incluído que caligrafa uma relação. A maior lição que tive sobre o amor deu-ma um franciscano quando me disse: «Já casei centenas de casais apaixonados que se separam dois anos depois. Porquê? Porque não basta a paixão, é preciso a decisão.» Anos a pensar no que engatilharia a decisão até compreender: a decisão é a extrema vulnerabilidade com que aceitamos o terceiro na relação – aquele que ambos criam e que ao emergir mata o egoísmo. Com a Não-Dualidade que a figura de Deus personifica sucede a mesma coisa: a Unidade é uma medida que cresce à medida da nossa colaboração, um pequeno ladrilho – o terceiro - vital para a leitura dos pormenores que é a entronização do eterno no instante.
Faltando um pormenor há um lapso no eterno. Chamar-lhe Deus ou não, é irrelevante para o processo.
E esta «interobjectividade» torna inadmissível, mesmo em farsa, um Deus-Pai-Autoritário como o do Velho Testamento.
Por elocubração, apesar da deliquescência do cristianismo, ainda podemos simpatizar com um Deus nosso vizinho que dá a face quando o agridem, e que podia proclamar com Aurobindo, segundo a versão francesa de «La Mère»: «O homem é Deus que se esconde da natureza para poder possui-la pela luta, pela persistência, pela violência e surpresa». ( Contudo, julgo não errar se presumir que o verbo «possuir» deva ser aqui substituído pelo verbo «revelar». É de «revelar-se» – ou de ser-se avatar - que se trata e não de possuir. Do mesmo modo que a violência referida se circunscreve à dobra da reflexão, mormente quando o que se repete devém imanência e o sujeito fica surpreendido pela extensa oportunidade do sentido.)

Começa a chover no trajecto do restaurante para casa. Levo comigo a pizza do jantar. Instintivamente coloco a caixa quadrada na cabeça para me proteger de uma carga tropical. Felizmente que são duzentos metros e que a gramagem da caixa aguenta o embate das bátegas. Chego à escada, sacudo o corpo da chuva, e a tepidez da pizza encharca-me as mãos e sobe pelos braços. Sobre a tampa, como a corrida foi curta, as bátegas imprimiram o desenho de uma galáxia radiografada. Subo a escada olhando o espraiar dos astros de cinza sobre a tampa branca. Assalta-me o espírito: isto foi uma árvore - e espanta-me o súbito vislumbre da transformação. Nada se perde, tudo se transforma. Uma bétula dá quantas caixas de pizza, quantos palitos? A transformação de tudo borbulha contínuamente à nossa volta mas nós amortecemos o seu ímpeto, esquecemo-nos, tornamo-nos indiferentes – de nada tiramos a devida consequência, uma ranhura onde o senso comum mete o pé-de-cabra, antegozando o assalto da casa, o mobilar da mesma com as suas respostas prontas.
«Não conheço outra revelação para além da do encontro do divino e do humano, no que o humano colabora com a mesma medida do divino. O divino aparenta-se a um fogo que derrete o mineral humano. Mas o que resulta daí não é algo que estivesse na natureza do fogo.» Martin Buber.

Começo a intuir que aquilo que Deus contestou de si mesmo a Moisés – Ehié ashér ehié – foi: “Eu serei o que serei!”, uma forma verbal que não indica tempo mas sim o aspecto dinâmico, inacabado, como se a sua essência não fosse ser mas a acção, o imparável suceder-se: algo por realizar, por devir.

Será hoje o retorno à fé um rompimento de novo necessário? Talvez estejamos necessitados de uma nova orientação, de uma metanóia (conversão), precavidos embora pela lucidez de Jung quando afirma que o homem, de um modo geral, não deve sucumbir nem mesmo ao bem.
Justa restrição que sobreleva um outro problema: decorrido um século após o apelo de Nietzsche para que nos evadamos da gramática, a responsabilidade que exige a simples alusão a um “Deus” não legislador ainda atemoriza a grande mole.
Se ao menos se conseguisse divulgar convenientemente aqueles que o cristianismo manteve em segredo para a maioria dos homens e que davam expressão à dinâmica obscura das representações míticas – Giacchino da Fiore, Mestre Eckhart, Jacob Boehme – talvez os processos de «individuação» (no sentido compartilhado por Kierkegaard e Jung,) se multiplicassem e uma nova energia encarnasse na distância desumana que nos afastou da fé. Mesmo “vaga” como a que Lévinas assemelha ao pleno da concha em cujo vazio se ouve o mar. “Vaga” como a pedra onde Miguel Angelo apoiava o escopro na escuta de uma palpitação intrínseca, dum rasto imaterial, erradio, que nos situa além do saque que a vaidade e o sucesso social convocam.
A simples noção de pertença que se experimenta quando avançamos até ao limite de um molhe de duzentos metros e reparamos, nesse instantâneo perfazer de uma vírgula líquida, que estamos submersos e pertencemos a algo exponencial. Que, persuasora, a baleia persegue-nos e que estamos como Jonas: contidos.


A demanda do Absoluto, desse não-lugar evasivo a todas as formas de lucro, é hoje, neste amorfo e desvitalizado reino do signo, o verdadeiro escândalo e uma coisa mais difícil de aceitar que o incesto, reduzido a subplot cinematográfico.
Veja-se o que se passava com a censura espanhola que de uma forma sistemática, e dir-se-ia plácida, promoveu durante décadas o incesto através  das modificações que introduzia nos filmes. Em Espanha os filmes são dobrados e, como as autoridades espanholas do franquismo optaram por modificar os diálogos ao invés de cortar as cenas “chocantes”, sempre que o enredo desenvolvia um caso de adultério a moralidade espanhola  exigia que os culpados deixassem de ser «amantes» para passarem a ser «irmãos». Ah, saboroso catolicismo!

Qual o maior paradoxo da Modernidade? Talvez este, também formulado por Aurobindo: «Todo o mundo aspira à liberdade e no entanto cada criatura está “apaixonada” pelos seus apegos. Eis o primeiro paradoxo e o nó inextricável da nossa natureza».
Terá este paradoxo resolução?
Na Índia, Deus é «uma criança eterna jogando um jogo eterno, num jardim sem fim» e nós humildemente somos os dados – a liberdade relativa dos dados – na sua mão. E contudo, desse lance de dados depende também a «sorte» de Deus. O que nos coloca de novo diante da necessidade de uma responsabilização dos nossos actos.
Concomitantemente, procurar em Deus uma ordem, uma harmonia, para o caos do mundo é o mesmo que confundir uma decalcomania com a pele.
A crer em Deus, há que aceitar a fé apesar do caos que se incrusta na rugosidade do real.
Os Budistas não falam em Deus, dizem antes que os rios procuram o mar. De facto parece mais justo realçar que talvez nos espere o oceano fragoroso que antecede as calamidades mas é nosso dever não fugir ao repto.

Deus – que cockpit? Traduzo esta deliciosa rábula de Christian Bobin: «- Penso numa história... a propósito... – se posso dizê-lo frivolamente – a propósito de Deus. A anedota que mais me agradou, que me fez rir e continua a fazer-me rir quando penso nela, é uma história que encontrei em Maurice Clavel que contava uma experiência ocorrida com um amigo seu. Maurice Clauvel era crente, convertido, e tinha às vezes essa vivacidade demonstradora que têm amiúde os recém convertidos. Não falando então de alguma coisa mais além disso – como um enamorado que acaba de descobrir a sua bela e que não pode suportar nenhum outro discurso além do que tenha a sua bela como centro de atenção -, acontecia-lhe receber muitas confidências sobre o tema. E um dia um amigo disse-lhe: «Quanto a mim era completamente ateu, serenamente ateu, e depois um dia, num passeio pelo campo, vi um anjo (ou a Deus)». Então Maurice Clauvel pergunta-lhe: «Mas como? Onde?». E o outro, um pouco dubitativo, responde: «Isto pode parecer estranho, mas na altura eu não pensava em absoluto nestas coisas – estas coisas não eram nem um tema de preocupação, nem inclusive de discussão, eram-me totalmente indiferentes...e nesse passeio pelo campo olhei uma vaca, e nos olhos da vaca...eu vi! Fiquei totalmente transtornado, e depois do passeio fui falar com um sacerdote.

Evidentemente, o que me faz ainda rir mais, é que agora existe a história das vacas loucas... tem muita graça.
- Não apenas essa história é divertida como ao mesmo tempo é muito justa. Ilustra bem essa ideia de ver algo aí onde habitualmente não se via nada...
- Sim, sim. E o que me diverte, é essa coisa estranha e divertida no cerne mesmo da experiência. Para falar de Deus – sabendo que dificilmente se pode fazê-lo, e talvez em absoluto – pensei muitas vezes que Ele punha um nariz vermelho. Que Ele tinha um nariz de palhaço...Porque há muitas belas claridades que nos são dadas dessa maneira, de repente, na vida diária, com um lado sempre divertido, inclusive um pouco descabelado. E digo-me que a Verdade é sempre dessa ordem. No que a mim me toca as mais belas lições, os apoios mais seguros, os mais profundos, chegaram-me amiúde com uma vertente cómica, uma vertente um pouco semelhante à da desta história»: Christian Bobin, em diálogo com Marie de Solemne


Emprestemos a Adonis a palavra intermédia: «Nous mourrons si nous ne créons pas les dieux/ Nous mourrons si nous ne les tuons pas// ô règne du rocher errant».




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