segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

NOVOS PORTOS: BLANCA VARELA

Blanca Varela, peruana (1926-2009). A poeta viveu em Paris, Florença e Washington, antes de se estabelecer mais uma vez na capital peruana. Estreou em 1959, com o livro Ese puerto existe, livro elogiadíssimo por Octavio Paz. Em 2007, a poeta recebeu o prémio Reina Sofia. As versões são minhas.

Ninguém te vai abrir a porta. Insiste,
             bate, bate com força.
No outro lado soa a música. Não. É o toque do telefone.
             Estás enganado.
É um aulido eléctrico, um arquejar mecânico, craques, chicotadas.
Não. Afinal é mesmo música. Sim.
Espera. Alguém chora esfarrapado por longos suspiros.
Ou não. Lembra um silvo agudo, uma enorme e bifurcada língua
             a lamber um céu pálido e vazio.
Alto. Claro... é um incêndio.

Todas as riquezas, todas as misérias, todos os homens
              - o ror de coisas que se precipita nessa melodia.
Tu estás só – do outro lado,
em combustão.
                        Deixarem-te entrar
é que é mentira.
Buscas, rebuscas, trepas, guinchas. É inútil.

Sê o vermezito transparente, enroscado, insignificante.
Com as tuas patitas mortais dá a volta à maçã,
          mede com o teu ventre turvo e tépido
          a sua inexpugnável redondez.
Tu, vermezito, tromba de insecto, bocarra de leão, dono da morte
e da vida.
Não podes entrar.
Juram.


O RAIO PERFUMOU SELVATICAMENTE A NOSSA CASA

II
O raio perfumou selvaticamente a nossa casa.
Temos sede, pressa e golpeamos
com o osso de uma flor na treva.
Há uma árvore podada nesta história.
Contemplamos o céu. Foram-se os sinais.
É de dia? É de noite?
Morreu a aranha que media o tempo,
confina-nos um muro carcomido
e uma nova família de sombras.


CENA FINAL

deixei a porta entreaberta
sou um animal que não se resigna a morrer

a eternidade é a obscura dobradiça que cede
ao mínimo estalido na noite da carne

sou a ilha que avança sustida pela morte
ou uma cidade ferozmente sitiada pela vida

ou talvez nada disto eu seja
senão a insónia e a glacial indiferença dos astros

deserto destino ombreiras
inexoráveis donde se levanta o sol dos vivos
reconheço essa porta
não há outra

geada primaveril
e um espinho de sangue
no olho da rosa.


NINGUÉM NOS DIZ COMO

Ninguém nos diz como
voltar a cara contra a parede
e
morrer simplesmente
assim como o fizeram o gato
ou o cachorro da casa
ou o elefante
que tomou o rumo
da sua agonia
no passo solto de quem sabe
a cerimónia improrrogável,
acenando as orelhas
ao compasso da sua tromba;
só no reino animal
se contam os exemplos de tal
comportamento,
mudar o passo
aproximar-se
farejar o já vivido
e virar as costas
simplesmente
virar as costas

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