domingo, 15 de janeiro de 2012

DR. STRAMBOLI


De cada livro que escrevi ficou sempre um resto, algo que ficou de fora. Em 1996, quando escrevi As Cinzas de Maria Callas, acabei por pôr de lado o conto que vai em baixo, mas eis que, por via das acções de guerrilha do ceramista anónimo que espalha alguns azulejos mordazes por Lisboa e arredores, ficou subitamente muito actualizado. Por isto o posto, dedicado à Ana Gouveia e ao Rui Silvares, muita boa gente, e que divulgaram a coisa no facebook. 
   

    Apanharam-me na rua do Sol ao Rato. Sempre gostei dessa rua por causa da genuflexão esquisita da palavra sol à palavra rato. "Genuflexão": aprendi em miúdo na igreja, o "Cabra" é que nos disse que quer dizer "estar ajoelhado". Eu acho uma palavra tão estrambólica que a digo sempre que posso. Foi das poucas coisas que me ficou da infância. Até no casamento do Falua, quando o padre perguntou se ele aceitava a Mariana como mulher, eu bichanei lá de trás, "pá, genuflexa...". Nem sei porque é que o gajo ficou zangado, a malta fartou-se de rir.
Mas dizia, pronto, que me apanharam na rua do Sol ao Rato, tinha eu já levantado o pavimento e tirado do bolso as pedra negras com que iria recalcetar aquele bocado. Que mal tinha escrever "A Amélia é minha!" em basalto, num passeio sem qualquer enfeite - aquilo nem tinha gracinha nenhuma! Lesei lá «a coisa pública»! Um gajo pode lesar uma merda que não sabe o que é? Escusavam é de me pôr no «privado». Só porque gritei? Um gajo grita quando as tripas lhe pedem.
Aprendi esta arte com o meu pai, que ma quis passar, mas dei-lhe nega até que pude. Coitado, morreu na queda estúpida de um elevador, sem me ter visto a calcetar as ruas como ele, um dos últimos, jurava. Esticou antes de me ver rico com o granel que eu podia ganhar com a arte - era a outra coisa que ele jurava, que o Sporting já só lhe dava desgostos. Hoje sei que o velho tinha olho, pronto, mas qu'é isso interessa agora? Ele tinha alguma coisa de me ir tirar das jogatanas com os amigos para me pôr a calcar com o malho na pedra solta? Eu tinha onze, doze anos, e ele apostava com os amigos quantas vezes seria eu capaz de erguer o malho. Se perdia, ficava lixado e eu é que comia, em casa, eram latadas de pôr um surdo a falar pelo ouvido. Como é que eu havia de gramar aquilo? Anos e anos a vê-lo a malhar, a juntar, a afeiçoar a pedra aos desenhos, e pronto, aprendi o jeito mas assim que pude disse logo que não. Eu já deitava corpo e ele só me podia levar à porrada. Desistiu quando lhe mandei um banano no estômago. Ficou sem me falar durante dois anos, o gajo sabia que ficou dobrado.
Eu, entretanto, como me ajeitava no desenho, pus-me a decorar montras. Não era um trabalho tão certo como o dele mas era mais visto. Mandei-lhe isso uma vez à cara e ele calou-se. Quem é que anda a olhar para os pés? Enquanto que se um gajo desenha numa montra um gato estrambólico a fazer malabarismo com os bigodes, os putos curtem. É uma berraria até a mãe comprar.
O juiz é que não conhece a Amélia, se não entrava numa boa. Todos os grandes poetas tiveram uma musa e escreveram carradas de sonetos só para ela, disse-me o "Cabra" e eu acredito. Agora, lá porque um gajo não é poeta tem de andar aos bonés? Eu tinha esta arte, pronto, escrevo com a pedra. Que é que importa à Avenida da República que eu lá tenha escrito: «A República adora-te, Amélia!»? Se calhar é estrambólico mas até é giro e a gente fartava-se de gozar, porque Amélias há muitas e só eu e ela é que sabíamos. Íamos lá no dia seguinte e ficávamos de lado, a morder a cena. Ou que tenha escrito junto à estátua do D. José: «O rei é danadinho por ti, Amélia» - qual é o mal? Eu nem fazia barulho. Topava se não havia polícia perto e punha-me num canto, sem que me vissem, a atirar pedras devagarinho e a substitui-las pelas minhas, pretas, já arranjadinhas de casa. Às quatro da manhã, quem é que dava por ela? Que é que queriam? Que eu andasse nas chinesas ou a dar-lhe na veia? A minha é esta!             
Trabalho todo o dia, sim porque eu vergo a mola, só em Almada já tenho vinte e tal montras decoradas, e à noite dou o meu pulinho a Lisboa com o meu saco de pedras e o martelo e o escopro. Poucas pedras para não ser muito pesado e não dá para fazer mais do que uma linha - também, para quê, nunca soube rimar! As mulheres dos gajos de taco é que não precisam de rimas. Vêem nas revistas. É tudo à fartazana. Até a miúda do Agostinho lhe foi pedir perdão à televisão. Eu gosto de uma cena mais discreta, pronto, mas que fica. Quer dizer, os gajos da câmara às vezes vão lá tirar a escrita na semana seguinte. Só que entretanto até vem nos jornais. Já me chamam o «poeta calceteiro», eu não gosto muito mas a Amélia gosta.
Esta cena começou com a Luísa. Eu andava com a Amélia e éramos os reis nos bailes da Incrível Almadense, não havia pai. O "Cabra" que era um pé e por isso andava nos Alunos de Apolo a ver se acertava com o ritmo, aquele gajo nunca teve jeito para nada senão para escrever cartas às miúdas, até que o Matos lhe deu a coça, mas o "Cabra" desafiou-nos para um concurso de danças de salão no Ateneu. O azar é que a avó da Amélia morreu no dia do concurso e ela teve de ir à terra. E vai o "Cabra" arranja-me um par, uma amiga do par dele que, jurava o gajo, estava para a dança como o Chalana para o futebol. O gajo pintava um bocado mas a Luísa não dançava mal e ficámos em terceiro. Fomos para os copos para comemorar e nessa noite acabei por lhe dar a primeira trancada. Eu nem sei como é que ela começou, ela é que me puxou pela corda, que eu era giro e assado e cozido, ela é que me fez a folha e como eu estava de folga da Amélia, olha deixa-te ir.
O pior é que a gaja dois meses depois me veio com uma conversa um bocado estrambólica, aquilo demorou a pôr o anzol de fora, mas quando veio a cerveja até me soube a nafta. Estás quê? Grávida. Estás quê? Estava grávida. Que não podia fazer nada, patati patatá, e eu completamente desatinado, e agora contar à Amélia... Deu-me logo com os pés. Há gajos que perdem o norte, mas eu tinha deixado gamarem-me a bússola inteirinha! E a Luisa com a barriga cada vez mais avantajada. O que é que se faz, o que é que não se faz, lá dei o nó. Nem era feia, um bocado magrizela, mas pronto. Nasceu-nos uma miúda, a Micaela, e eu procurei esquecer a Amélia, que entretanto tinha arranjado emprego nos telefones e se pirou das Torcatas. Só para "não dar com as minhas trombas", como ela dizia. Uma merda.
A desbocada da Luísa é que não fazia nada, até de dançar deixou. Encafuava-se todo o dia em casa, a comer chocolates e continuava a parecer uma espiga a quem puxaram pelos pés. Uma merda, mas eu gostava à brava da miúda. E meteu-me na cabeça fazer um miúdo, a cena do casalinho. Um rapaz para eu levar à bola. Ela nem que não, nem que sim, às vezes parece-me que só gostava de comer chocolates. Não se negava, mas também não via que lambesse os dedos. Eu é que andava obcecado com um rapaz. E todos os meses, nada. Ao fim de um ano, sem ela saber, fui ao médico, fiz uma análise e bebi uma grade na noite em que soube os resultados. "Nada doutor?". "Não e lamento informá-lo mas você não pode ter filhos... a emissão de esperma não é suficiente...". "Mas eu tenho uma filha...". "Não me pronuncio sobre aquilo em que cada um quer acreditar...". Quantas bejecas tem uma grade? O que eu chorei por causa da miúda. Nem a Micaela era minha. Não lhe disse, pronto, para não dar parte fraca. Um gajo primeiro aguenta as broncas e depois é que começa a arriar.
Andava há dez dias a magicar numa vingança, quando chego a casa e dou com uma grande festança. "Uma surpresa para o papá!", diz-me o coirão com um beijo de Judas, "Estou grávida de um mês...". Eu olhava as serpentinas, as estrelas de celofane na parede, os comes na mesa, as cervejas e o wishky, olhava o focinho dos amigos, todos ali com as mulheres - só faltava o "Cabra", que já não aparecia - e a desbocada numa grande agitação. O "Cabra" é que a topou, naquele dia na praia em que me meti com ele por me ter arranjado aquele caldinho. Ele, olhou para ela à beira de água, já p'ra aí de seis meses, e respondeu-me com um arrependimento sincero, " tens razão, queria arranjar-te uma parceira para o foxtrot e acabaste por ficar com uma galinha palustre...". Eu olhava para o Bilas, para o Victor Hugo, para o Falua, para o Marinho, para o Alemão, para o cego do Armando e só me vinha à mioleira uma pergunta macaca: qual destes gajos é me emprenhou a escanzelada? A gaja tinha-me enganado desde o princípio, pôs sempre o prato vazio à minha frente na mesa e eu ceguinho, estrambólico de todo, só agora é que sentia como ela me espetava e remexia o garfo na língua.
Deixei tudo nessa mesma noite. Deixei as análises na mesinha de cabeceira dela, saí pela janela, a gente morava num rés-do-chão, eles que se embebedassem todos até partir, queria lá saber. Fui para uma residencial, baratinha, e desfiz-me como pude em cervejas e brandys. O que me doía era a miúda, mas se não era minha. Ao fim de uma semana procurei a Amélia, que vivia sozinha e lá no fundo continuava com um fraquinho por mim.
"O que é que eu posso fazer para acreditares que só te quero a ti?". "Não sei, mas trocaste-me por uma galdéria e fizeste-me passar a vergonha da minha vida e por isso o melhor é pores-te em cima do cavalo do D. José a gritar por mim até eu te perdoar... e despacha-te que tenho um rapaz que é da marinha mercante, com quem me escrevo e que chega dentro de dez dias...". Comecei nessa mesma noite. À entrada do prédio onde ela vive calcetei: «Perdoa-me Amélia, amor da minha vida!». E há duas semanas que não paro. Ela ao princípio achou estrambólico mas aceitou-me ao fim de cinco dias e eu prometi que lhe escrevia o nome em todas as ruas da cidade.
Quero lá saber que o juiz me prenda. Hei-de voltar. Até ao fim da minha vida, hei-de voltar. Já tenho um cantinho em vista ao pé da casa do Presidente: «A Amélia votou no senhor». Se calhar não me posso bater à amnistia, não? Vem aí os guardas com o "Cabra" e o advogado. Faz jeito ter um amigo com conhecimentos. Antes de entrarmos no tribunal hei-de perguntar-lhe porque é que nos últimos tempos me chama "Dr. Stramboli..."      










Para quem não ler, abaixo de Isaltino Morais, lê-se: «corrupto, criminoso, político»

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