De cada livro que escrevi ficou sempre um resto, algo que ficou de fora. Em 1996, quando escrevi As Cinzas de Maria Callas, acabei por pôr de lado o conto que vai em baixo, mas eis que, por via das acções de guerrilha do ceramista anónimo que espalha alguns azulejos mordazes por Lisboa e arredores, ficou subitamente muito actualizado. Por isto o posto, dedicado à Ana Gouveia e ao Rui Silvares, muita boa gente, e que divulgaram a coisa no facebook.
Apanharam-me na rua do Sol ao Rato. Sempre gostei dessa rua por causa da genuflexão esquisita da palavra sol à palavra rato. "Genuflexão": aprendi em miúdo na igreja, o "Cabra" é que nos disse que quer dizer "estar ajoelhado". Eu acho uma palavra tão estrambólica que a digo sempre que posso. Foi das poucas coisas que me ficou da infância. Até no casamento do Falua, quando o padre perguntou se ele aceitava a Mariana como mulher, eu bichanei lá de trás, "pá, genuflexa...". Nem sei porque é que o gajo ficou zangado, a malta fartou-se de rir.
Mas dizia, pronto, que me apanharam na rua do Sol ao Rato, tinha eu já levantado o pavimento e tirado do bolso as pedra negras com que iria recalcetar aquele bocado. Que mal tinha escrever "A Amélia é minha!" em basalto, num passeio sem qualquer enfeite - aquilo nem tinha gracinha nenhuma! Lesei lá «a coisa pública»! Um gajo pode lesar uma merda que não sabe o que é? Escusavam é de me pôr no «privado». Só porque gritei? Um gajo grita quando as tripas lhe pedem.
Aprendi esta arte com o meu pai, que ma quis passar, mas dei-lhe nega até que pude. Coitado, morreu na queda estúpida de um elevador, sem me ter visto a calcetar as ruas como ele, um dos últimos, jurava. Esticou antes de me ver rico com o granel que eu podia ganhar com a arte - era a outra coisa que ele jurava, que o Sporting já só lhe dava desgostos. Hoje sei que o velho tinha olho, pronto, mas qu'é isso interessa agora? Ele tinha alguma coisa de me ir tirar das jogatanas com os amigos para me pôr a calcar com o malho na pedra solta? Eu tinha onze, doze anos, e ele apostava com os amigos quantas vezes seria eu capaz de erguer o malho. Se perdia, ficava lixado e eu é que comia, em casa, eram latadas de pôr um surdo a falar pelo ouvido. Como é que eu havia de gramar aquilo? Anos e anos a vê-lo a malhar, a juntar, a afeiçoar a pedra aos desenhos, e pronto, aprendi o jeito mas assim que pude disse logo que não. Eu já deitava corpo e ele só me podia levar à porrada. Desistiu quando lhe mandei um banano no estômago. Ficou sem me falar durante dois anos, o gajo sabia que ficou dobrado.
Eu, entretanto, como me ajeitava no desenho, pus-me a decorar montras. Não era um trabalho tão certo como o dele mas era mais visto. Mandei-lhe isso uma vez à cara e ele calou-se. Quem é que anda a olhar para os pés? Enquanto que se um gajo desenha numa montra um gato estrambólico a fazer malabarismo com os bigodes, os putos curtem. É uma berraria até a mãe comprar.
O juiz é que não conhece a Amélia, se não entrava numa boa. Todos os grandes poetas tiveram uma musa e escreveram carradas de sonetos só para ela, disse-me o "Cabra" e eu acredito. Agora, lá porque um gajo não é poeta tem de andar aos bonés? Eu tinha esta arte, pronto, escrevo com a pedra. Que é que importa à Avenida da República que eu lá tenha escrito: «A República adora-te, Amélia!»? Se calhar é estrambólico mas até é giro e a gente fartava-se de gozar, porque Amélias há muitas e só eu e ela é que sabíamos. Íamos lá no dia seguinte e ficávamos de lado, a morder a cena. Ou que tenha escrito junto à estátua do D. José: «O rei é danadinho por ti, Amélia» - qual é o mal? Eu nem fazia barulho. Topava se não havia polícia perto e punha-me num canto, sem que me vissem, a atirar pedras devagarinho e a substitui-las pelas minhas, pretas, já arranjadinhas de casa. Às quatro da manhã, quem é que dava por ela? Que é que queriam? Que eu andasse nas chinesas ou a dar-lhe na veia? A minha é esta!
Trabalho todo o dia, sim porque eu vergo a mola, só em Almada já tenho vinte e tal montras decoradas, e à noite dou o meu pulinho a Lisboa com o meu saco de pedras e o martelo e o escopro. Poucas pedras para não ser muito pesado e não dá para fazer mais do que uma linha - também, para quê, nunca soube rimar! As mulheres dos gajos de taco é que não precisam de rimas. Vêem nas revistas. É tudo à fartazana. Até a miúda do Agostinho lhe foi pedir perdão à televisão. Eu gosto de uma cena mais discreta, pronto, mas que fica. Quer dizer, os gajos da câmara às vezes vão lá tirar a escrita na semana seguinte. Só que entretanto até vem nos jornais. Já me chamam o «poeta calceteiro», eu não gosto muito mas a Amélia gosta.
Esta cena começou com a Luísa. Eu andava com a Amélia e éramos os reis nos bailes da Incrível Almadense, não havia pai. O "Cabra" que era um pé e por isso andava nos Alunos de Apolo a ver se acertava com o ritmo, aquele gajo nunca teve jeito para nada senão para escrever cartas às miúdas, até que o Matos lhe deu a coça, mas o "Cabra" desafiou-nos para um concurso de danças de salão no Ateneu. O azar é que a avó da Amélia morreu no dia do concurso e ela teve de ir à terra. E vai o "Cabra" arranja-me um par, uma amiga do par dele que, jurava o gajo, estava para a dança como o Chalana para o futebol. O gajo pintava um bocado mas a Luísa não dançava mal e ficámos em terceiro. Fomos para os copos para comemorar e nessa noite acabei por lhe dar a primeira trancada. Eu nem sei como é que ela começou, ela é que me puxou pela corda, que eu era giro e assado e cozido, ela é que me fez a folha e como eu estava de folga da Amélia, olha deixa-te ir.
O pior é que a gaja dois meses depois me veio com uma conversa um bocado estrambólica, aquilo demorou a pôr o anzol de fora, mas quando veio a cerveja até me soube a nafta. Estás quê? Grávida. Estás quê? Estava grávida. Que não podia fazer nada, patati patatá, e eu completamente desatinado, e agora contar à Amélia... Deu-me logo com os pés. Há gajos que perdem o norte, mas eu tinha deixado gamarem-me a bússola inteirinha! E a Luisa com a barriga cada vez mais avantajada. O que é que se faz, o que é que não se faz, lá dei o nó. Nem era feia, um bocado magrizela, mas pronto. Nasceu-nos uma miúda, a Micaela, e eu procurei esquecer a Amélia, que entretanto tinha arranjado emprego nos telefones e se pirou das Torcatas. Só para "não dar com as minhas trombas", como ela dizia. Uma merda.
A desbocada da Luísa é que não fazia nada, até de dançar deixou. Encafuava-se todo o dia em casa, a comer chocolates e continuava a parecer uma espiga a quem puxaram pelos pés. Uma merda, mas eu gostava à brava da miúda. E meteu-me na cabeça fazer um miúdo, a cena do casalinho. Um rapaz para eu levar à bola. Ela nem que não, nem que sim, às vezes parece-me que só gostava de comer chocolates. Não se negava, mas também não via que lambesse os dedos. Eu é que andava obcecado com um rapaz. E todos os meses, nada. Ao fim de um ano, sem ela saber, fui ao médico, fiz uma análise e bebi uma grade na noite em que soube os resultados. "Nada doutor?". "Não e lamento informá-lo mas você não pode ter filhos... a emissão de esperma não é suficiente...". "Mas eu tenho uma filha...". "Não me pronuncio sobre aquilo em que cada um quer acreditar...". Quantas bejecas tem uma grade? O que eu chorei por causa da miúda. Nem a Micaela era minha. Não lhe disse, pronto, para não dar parte fraca. Um gajo primeiro aguenta as broncas e depois é que começa a arriar.
Andava há dez dias a magicar numa vingança, quando chego a casa e dou com uma grande festança. "Uma surpresa para o papá!", diz-me o coirão com um beijo de Judas, "Estou grávida de um mês...". Eu olhava as serpentinas, as estrelas de celofane na parede, os comes na mesa, as cervejas e o wishky, olhava o focinho dos amigos, todos ali com as mulheres - só faltava o "Cabra", que já não aparecia - e a desbocada numa grande agitação. O "Cabra" é que a topou, naquele dia na praia em que me meti com ele por me ter arranjado aquele caldinho. Ele, olhou para ela à beira de água, já p'ra aí de seis meses, e respondeu-me com um arrependimento sincero, " tens razão, queria arranjar-te uma parceira para o foxtrot e acabaste por ficar com uma galinha palustre...". Eu olhava para o Bilas, para o Victor Hugo, para o Falua, para o Marinho, para o Alemão, para o cego do Armando e só me vinha à mioleira uma pergunta macaca: qual destes gajos é me emprenhou a escanzelada? A gaja tinha-me enganado desde o princípio, pôs sempre o prato vazio à minha frente na mesa e eu ceguinho, estrambólico de todo, só agora é que sentia como ela me espetava e remexia o garfo na língua.
Deixei tudo nessa mesma noite. Deixei as análises na mesinha de cabeceira dela, saí pela janela, a gente morava num rés-do-chão, eles que se embebedassem todos até partir, queria lá saber. Fui para uma residencial, baratinha, e desfiz-me como pude em cervejas e brandys. O que me doía era a miúda, mas se não era minha. Ao fim de uma semana procurei a Amélia, que vivia sozinha e lá no fundo continuava com um fraquinho por mim.
"O que é que eu posso fazer para acreditares que só te quero a ti?". "Não sei, mas trocaste-me por uma galdéria e fizeste-me passar a vergonha da minha vida e por isso o melhor é pores-te em cima do cavalo do D. José a gritar por mim até eu te perdoar... e despacha-te que tenho um rapaz que é da marinha mercante, com quem me escrevo e que chega dentro de dez dias...". Comecei nessa mesma noite. À entrada do prédio onde ela vive calcetei: «Perdoa-me Amélia, amor da minha vida!». E há duas semanas que não paro. Ela ao princípio achou estrambólico mas aceitou-me ao fim de cinco dias e eu prometi que lhe escrevia o nome em todas as ruas da cidade.
Quero lá saber que o juiz me prenda. Hei-de voltar. Até ao fim da minha vida, hei-de voltar. Já tenho um cantinho em vista ao pé da casa do Presidente: «A Amélia votou no senhor». Se calhar não me posso bater à amnistia, não? Vem aí os guardas com o "Cabra" e o advogado. Faz jeito ter um amigo com conhecimentos. Antes de entrarmos no tribunal hei-de perguntar-lhe porque é que nos últimos tempos me chama "Dr. Stramboli..."
Para quem não ler, abaixo de Isaltino Morais, lê-se: «corrupto, criminoso, político»
Sem comentários:
Enviar um comentário