«A figura estéril voa carregada de frutos»:
é estupendo o paradoxo com que Murilo Mendes abre
o poema intitulado Segunda Natureza.
E, fiel ao que anuncia, o verso faz-nos cavalgar
na sela de um oximoro, que nos ejecta o olhar
para lá de uma linearidade natural, inaugurando
uma segunda, uma terceira natureza.
Quando lemos o fecho do poema,
iniciado com estes dois versos impagáveis:
«Meu corpo é um estrangeiro
A quem levo pão e água diariamente.»
temos a certeza de estarmos diante
de um grande poeta que cumpriu a promessa
do título: a segunda natureza prolongou-se
no estranhamento do corpo.
O poeta enrola a linha no carreto e arrebata-nos,
como no fascinante anzol deste começo:
«Sentamo-nos à mesa servida por um braço de mar.»
uma concatenação mais eficaz.
Porém, o arranque que talvez prefira em Murilo
seja o do poema Elegia Nova, de 1944:
«O horizonte volta a galope
Curvado sobre o martelo
É noite: e dói»
Fala-nos de quê, o poeta? Do Sol.
Duma penada evoca-nos Parménides,
o Sol levado pelos corcéis,
e o medo desse tempo imóvel, incriado,
em que não houvera ainda a separação crucial
entre dia e noite: o Sol era assim enterrado vivo
diariamente pelo martelo das trevas,
antes de ser ressuscitado
pela urgência de uma visão.
E talvez aí não seja suficiente
transcrever o que de real se trafica
na memória e o poema só se transfigure
em luz se nutrido pelo elemento invisível
que fez despontar o inesperado.
Algo tão dúctil e imaterial como
o que fecha o seguinte poema:
«ALGO
A Maria da Saudade
O que raras vezes a forma
Revela.
O que sem evidência, vive.
O que a violeta sonha,
O que o cristal contém.
Na sua primeira infância.»
Porque afinal tivemos muitas infâncias.
a infância é tão polivalente e una
como os ocelos no olho do insecto.
Eu tive milhares de infâncias,
vocês não, interroga-nos o poeta.
Pois eu já fui noutro tempo rapaz
e rapariga, arbusto e ave e peixe…
lembrava Empedócles, e este vórtice
de «incontáveis tribos de coisas mortais»
é que em nós torna o mundo exequível
e lhe empresta raízes, policromas.
Sim, Murilo, sempre que morri
em rapaz ressuscitei em ave, inex-
tenso como o mar: «suor da terra».
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