quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

BILENE, AGAIN

No dia em que a Grécia anuncia, eh pá, vamos desmoronar, eu parto para quatro dias de desintoxicação no Bilene. Again. Adeus casas de cambio, adeus Vénus e Marte, adeus credulos pategos, adeus pátria minha desnavegada e retraída, adeus Guebas, adeus policia na estrada, adeus alunos & baldrocas, adeus incalcináveis turnos da opacidade do mundo...
Da ultima vez que ali desencalhei os nervos escrevi crónica, que publiquei no Savana. Aqui a boto:

CORRESPONDENTE NO BILENE
(uma lagoa paradisíaca à beira mar, a 200 km de Maputo, e em cujas margens a burguesia de Maputo ergue as suas mansões)
por António Cabrita

Era uma vez um ilhéu que gostava muito de uma mulher que vivia noutra ilha. Gostava tanto dela que lhe escrevia todos os dias. Ela acabou por casar com o carteiro. O carteiro era o meu avô.
Eis um tipo de narrativas que eu já não julgava possível desenvolver com credibilidade por causa do progresso. No princípio do século XX, o meu avô, um carteiro apessoado e cheio de lábia beneficiou da falta de mobilidade e de transportes entre as ilhas dos Açores para destapar o coração da minha avó fazendo de Cupido. Hoje o Msn dispensaria o seu papel na história, as carreiras entre as ilhas são bi-diárias - o tremendo charme do meu avô ficaria a ver navios.
Mas descobri um lugar onde a sua história ainda se encaixa: o Bilene. Passo a explicar. A primeira vez que cá vim foi em 95. E vi um lugar paradisíaco, com condições para um crescimento exponencial rapidíssimo… mas os tempos eram de vacas magras. Nessa altura fiz três amigos: o Chico, o Artur e o Momed, três miúdos que palmilhavam diariamente doze quilómetros pela praia para irem à vila comprar sal ou arroz, ou fósforos, coisas básicas.
Esta semana voltei, com a filharada. Foi uma reinação, a mais nova ficou encantada com o tamanho da banheira. E, em casa, alto incremento da sueca.
Nos breves momentos à solta que nos deixam três crias + a amiga,  observo o movimento dos pescadores, da população autóctone, das mulheres e crianças que circundam a lagoa pela praia para ir buscar farinha, arroz, ovos, material para o remendo das redes, sei lá. E penso nas duas horas que eles perdem nisto, para lá, e nas duas da volta, quatro horas extraviadas que só deixam tempo para uma vida fisiológica, de resposta às necessidades e estímulos mais primários. Estou a lamentá-los (por que, estão a ver, podiam ser horas dedicadas à formação) e não é que de repente nesse magote de figurinhas ambulantes descubro o Chico, o Artur e o Momed?
Doze anos depois, já com filhos, a vida dividida entre a pesca e a maratona de ir buscar fósforos, arroz, preservativos (idealizemos). O Chiquinho já sem dentes, o Momed analfabeto como antes e o Artur (que era o mais bonito) com uma cicatriz na testa que se escusou a explicar. Se calhar foi o carteiro das cartas de amor de alguém para uma cachopa que vivia em Macia e um dia quis fazer de padrinho à italiana (como o meu avô) e lixou-se.
O Chico vem com um filho, o Nelson, de cinco anos a quem ele inicia às longas estiradas (daqui a 10 anos, imagino, o garoto deixa a miúda em suspenso, lá para as bandas do Monte dos Noivos, diz-lhe ‘espera aí, que vou buscar a camisinha!’, e perfaz em corrida 10 km no fito de ser um homem prevenido). Interrogo-me se o rapazito depois das tarefas obrigatórias para a comunidade familiar (ó Nelson, pede a mãe, vai-me comprar fósforos, ou arroz…) terá tempo para ir à escola, duas horas para lá, duas na volta, mas ofereço-lhe uma cola, felicito o Chico por estar vivo e calo-me.
Olho em volta, certifico as condições ideais para um crescimento explosivo numa década e interrogo-me: que fizeram os responsáveis até agora, como é possível que doze anos depois as infra-estruturas sejam rigorosamente as mesmas e só os ricos tenham beneficiado das potencialidades do lugar? Encolho os ombros, peço um uísque no imemorial Estrela do Mar e sento-me diante da televisão a ver o meu primeiro telejornal após uma semana de jejum, e então pela nonagésima vez no ano ouço um Laurentino gabar-se: Nellspruit (a cidade sul-africana mais próxima, a 200km) cresceu à custa dos moçambicanos! Sou de imediato varado pelo enigma, inconveniente, pertinaz: mas porque não cresce Bilene à custa dos moçambicanos? E porque não cresce Moçambique a outra velocidade, apesar do labor com que os moçambicanos fizeram crescer Nellspruit? 
Talvez porque quando os moçambicanos começaram a ir largar o dinheiro a Nellspruit os sul-africanos tiveram «uma visão» em relação ao que fazer com essa mina. Não basta ter o dinheiro, é preciso ter uma estratégia. Começar por oferecer bicicletas àqueles milhares de jovens que fazem da praia um atalho para os libertar para a formação, por exemplo. Talvez esses moçambicanos possam fazer por si o que os outros não fazem por eles.
Interrompo a crónica. A mais nova acordou com uma birra exigindo leite, que acabou. A birra sobe de tom e pergunto-me (sem carro, nem bicicleta) se palmilho três quilómetros de ida e três de regresso para lhe ir comprar leite.
Convenço-a a comer batatas fritas.

1 comentário:

  1. Que texto, admiro a sua forma de escrita, realmente podia eu crer que isto serviria para lavar as mentes dos endinheirados que por aqui pululam. as palavras nunca são em vão

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