E a coisa
morreu para mim ali.
Mas havia
duas ou três questões a esclarecer e que me parecem importantes, e por isso,
passado uns meses, resolvi repegar no assunto até como forma de ensaiar esboços
que depois desenvolverei.
A primeira
é sobre o famigerado “realismo”. A segunda será sobre se há ou não uma geração
que tenha surgido na net e nos blogues – a terceira é surpresa. Vamos então à
primeira:
Quando Barthes nota, numa asserção famosa, que “na página, a merda
não fede!” abre uma clivagem em cujo impasse se abismam muitas profissões de fé
realistas.
Convém, previamente, lembrar duas coisas: o reparo que Humpty
Dumpty fez à Alice, “não me interessa o que tu dizes, mas quem manda no
que tu dizes!”, deve ser uma fonte de auto-vigilância contínua, seja qual for o
território poético ou estético a que queiramos adicionar a nossa crença,
cientes de que seja qual for o estilo que experimentemos não escapamos à
suspeita de que raramente mandamos no que exprimimos.
Depois,
dizer, “a realidade”, é algo insipidamente genérico e só a ocorrência do
indeterminado – o acontecimento que curto-circuita os seus predicados
consensuais – lhe abre um sulco e lhe confere um sentido, que reordena a
espaços a pontuação dos seus elementos e articula a sua “natureza”.
Porque a
natureza não passa do modo como protocolámos a nossa relação com o mundo. Por
exemplo, o realismo - em terras africanas, onde a erosão material, física,
humana e social, é de mil por cento de aceleração em relação à verificável na
Europa - não admite os mesmos contornos, escala, e procedimentos narrativos que
são de uso na Europa. O realismo aqui é mais trágico e, por compensação,
perpassa-o um suplemento mágico, que se sobrepõe ao quotidiano. Bastou mudar de
geografia. Isto é uma coisa tangível, não se trata de uma hipótese.
Ou seja,
dificilmente não está a realidade exterior articulada com as condições para o
processo de a lermos, com o trajecto da nossa implicação nela.
Deste modo,
caucionar uma referência tutelar é, por conseguinte, uma alucinação consentida e ao dizermos “o realismo” definimos
apenas uma das cinquenta formas de decoração que, segundo o hinduismo, o
culminam – estabelecemos a propriedade de um protocolo.
Nelson
Goodman há muito esclareceu: i) as realidades não são a realidade; ii)
há uma necessidade de rebatermos incansavelmente a naturalidade do signo.
Talvez
haja, isso sim, e disso não se fala, dimensões exotéricas e esotéricas da arte,
no contexto de uma tradição ou género – como acontece nas religiões – que
condicionam o seu “fazer mundo”.
Entretanto,
acredite-se no que se quiser: na “pureza em arte”, no “ascético jejum da
metáfora”, no “primado do referencial”, no primado da representação sobre a
expressão: porém, se não houver um elo que permita fundir uma “escrita realista”
com a totalidade da experiência que desconforma a realidade, então é
melhor reconhecer que no seu seio a própria discursividade se estrutura por géneros,
sem que se seja legítimo descortinar aí a supremacia do “western” sobre
o “thrilher”, do “sujo” sobre o
“puro” - e aceitar nas suas margens o diverso, outros olhares.
A haver um realismo terá de ser trans, como o praticam um
Ashbery ou um John Berger, ou como foi sendo o de Carlos Oliveira – que talvez franzissem
o nariz ao epíteto porque a pluralidade não necessita de fórmulas
redutoras.
Talvez a esfera da “nova austeridade”, do “sentido comum”, do
“novo realismo”, como se lhe queira chamar, tenha estado menos infiltrado pela “pureza”
dos princípios do que por aquilo a que Karl Mannheim chamou outrora “a
influência da concorrência no domínio do intelectual”.
O que, se dá uma legitimidade sociológica à actuação da constelação
dominante em que se converte cada
nova geração, ao mesmo tempo a tira do sério - ficam os seus arautos parecidos
aos náufragos que creem poder ditar as suas condições ao mar.
Vale a
pena transcrever este trecho de Robert Calasso, sobre Mallarmé: «Nunca dar o objecto mas sim a ressonância do
objecto. Porquê esta obsessão? Muitos leitores recentes julgaram entender que
neste preceito mallarmeniano está implícita uma redução do mundo à palavra, com
a evidente consequência da plena auto-referencialidade e auto-suficiência
verbal. Mas não se trata disso: pelo contrário, essa posição empobreceria e
tornaria vã a operação oculta que ali tem lugar.
O pressuposto desta
interpretação é o mesmo postulado que rege em boa parte o nosso mundo, que o
ajuda a funcionar, mas que ao mesmo tempo o torna inepto para acolher uma boa
parte do essencial. Na sua forma mais concisa, tal postulado declara que o
pensamento é linguagem. Mas acontece que nós
não pensamos por palavras. Pensamos às
vezes em palavras. As palavras são arquipélagos flutuantes e
esporádicos. A mente é o mar. Reconhecer na mente este mar parece algo
proibido, que as ortodoxias vigentes, nas suas diversas versões, científicas ou
só commonsensical, evitam quase
por instinto. Mas radica aqui, precisamente, a bifurcação essencial. É aqui que
se decide em que direcção se moverá o conhecimento.» (sublinhado meu)
Extraordinária
intuição.
O
«mar» é apenas outra forma de lembrar que nós não observamos o mundo de fora,
brotamos do seu remoinho. A mente é o mar que rodeia o remoinho. O que Foucault
intuira com o seu «campo epistemológico».
Lendo
uma parte significativa da produção poética contemporânea, em Portugal, fico
com a sensação de que há uma quantidade excessiva de gente para quem a mente, apesar
do autor se afirmar apegado a uma órbitra referencial,
é unicamente linguagem, e se arma de uma aversão pânica por quanto seja elipse,
sugestão, gesto, sombra, contraponto com o «off», deslocação da metáfora,
silêncio e profundidade. O ror de pessoas que acusa um «horror vacui» é
impressionante. Afanosamente agarra-se à cápsula das palavras e, protegida por
uma armação de proposições, tenta aplanar o espaço e o tempo até à extensão
lisa, com as dobras do raciocínio a multiplicarem-se num mero coleccionismo.
Como
em Hamlet.
Shakespeare, nesta peça,
multiplica os espelhos, as simetrias, as comparações. Hamlet sente-se um
“príncipe de palha”, que vale dez por cento de Fortinbras, nutrindo do mesmo
sentimento de Claúdio, seu tio e novo rei da Dinamarca, em relação ao irmão a
quem usurpou o trono e a mulher.
Ambos
– Hamlet e Claúdio - acedem à sua realidade como a um décor esburacado pela
ausência dos princípios. Ambos imagens desfocadas, aparências de um ideal que o
destino refractou numa «metade pior», fantasmática.
«Vou arrastar estas vísceras para o quarto ao
lado», atira Hamlet à mãe, depois de acusá-la de ter menos memória e
vergonha que uma besta irracional.
E,
contudo, o pendor para o raciocínio do príncipe é uma armadilha. Mesmo quando
se interroga se deve “como uma puta”, descarregar o seu coração pelas palavras,
o seu diagnóstico depende delas, gralha com pilhas duracel: words, words,
words.
Hamlet
adivinha em Fortinbras o seu avatar sublime mas, ao olhar para tudo segundo o
ponto de vista da doença, a sua consciência torna-se, no dizer de Northrop
Frye, «um princípio de morte, um recuo
diante do acto», brotando-lhe as palavras como metástases indefinidas da
identidade.
Em
Hamlet os problemas nunca deixam de ser levantados mas mil alçapões mentais
impossibilitam a sua resolução, e não podia ser doutro modo: na óptica do
virtual o real não passa de vestígio – é um cadáver de referência.
Compreende-se que esta peça seja, segundo Fry, a mais claustrofóbica das peças
e um lugar onde corre uma tragédia sem a lebre da catarse.
Para
Hamlet, os seus conflitos devém “imagens de repertório”. Porque em Hamlet
pensar é um gadget. Aqui temos uma das características daquilo com que
se confunde hoje “o realismo”: a frivolidade de pensar que recobrimos a
realidade opinando sem cessar sobre ela…
Julgamos que face ao «complexo
de Hamlet» que invadiu muita da poesia de predominância referencial, em
Portugal, seria útil lembrar as razões do menor apreço de Wittgenstein pelo
bardo inglês. Para
Wittgenstein a soberania e a singularidade manipuladoras que vicejam na
habilidade verbal de Shakespeare geram uma significação meramente «fenoménica».
E a
simples fenomalidade não é fiel à realidade da vida.
Parece-me
um juízo excessivo – que serve para Hamlet e Iago, por exemplo, mas não para
muitas outras personagens shakespearianas - mas não deixamos de encontrar neste
alerta estranhas ressonâncias com o panorama da literatura actual.
Hamlet
ejecta (não emite) as palavras como se fossem “vírus” (e daqui o escândalo do
corpo, a culpabilidade do sexo) e estamos sempre a ver a acção do seu próprio
cérebro, a sua refracção instantânea e sem profundidade. Germina, inapelável
diante duma aflitiva impossibilidade de catarse.
Confiemos:
«La poésie ne cesse de faire allusion à
ce qui nous échappe au langage, à ce qui le travesse et le dépasse» (Michel
Camus). O que não tem nada a ver,
desenganem-se, com inefáveis. Acho que pouco se tem reflectido sobre este aviso
de Mallarmé: “Ali, onde quer que seja, negar o indizível,
que mente!”. Trata-se antes, por
conseguinte, de lembrar que a materialidade dos actos, de que as palavras fazem
parte, está mais nas relações, na “invisibilidade” das permutas, do que na
objectividade dos factos, naquilo que é relatável à vista desarmada…
A “visão”
da realidade, a havê-la, brota de um acto. E a duplificação de escrever pode engolfar-se na sua matéria se a
mão, movida por alguma cegueira, se entrosar nela, fazendo transparecer a
dinâmica relacional da vida.
O que pode ser captado de
diversas formas e também e até num modo realista, como neste extraordinário
poema de Philip Larkin (poeta que não é da minha cabeceira, embora alguns
poemas seus sim):
VENTO NUPCIAL
O vento soprou sem parar no dia do meu casamento.
E a minha noite de núpcias foi a noite do
vendaval;
A porta do estábulo batia, batia tanto,
Que ele teve de ir fechá-la. Deixou-me
Estonteada à luz da vela, a ouvir bater a chuva;
Olhava a imagem do meu
rosto no castiçal entrançado,
Sem nada ver. Quando
ele se voltou e disse
Que lhe pareceram inquietos os cavalos fiquei triste
Por faltar naquela noite a homens ou animais
A felicidade que eu tinha.
Agora
já de dia,
Ao sol tudo são novelos emaranhados pelo vento.
Ele saiu para ir ver das inundações e eu
Levo um balde amolgado ao galinheiro,
Espalho o milho e fico a olhar. Vejo o vento
A vergastar nuvens e florestas, a sacudir-me
O avental e a roupa pendurada na corda de secar.
Mas como contas dum rosário desfiadas entre os dedos
A representação de ti no
vento perpassa tudo o que faço –
Obsessivamente.
Conseguirei de novo dormir
Com esta manhã perpétua partilhando a minha cama?
Poderá a própria morte drenar
Estes novos lagos de prazer, concluir
O nosso ajoelhar como gado junto a águas generosas?
(trad.
de Maria Teresa Guerreiro)
Creio (hoje, amanhã não
sei) que o núcleo do poema está no que sublinhei. O resto é a extraordinária mise en scéne com que o autor mete tudo
em relação, e nos faz ver o vento que
tudo interpenetra e contamina - sem afinal tornar passageiro o sentimento. É
esse contraste que magnifica o poema. Porém o que consagra este poema não é o facto
do seu conteúdo remeter-nos para um mundo referencial, comum a todos, o que
importa nele é a sua realização verbal, que uma situação humana se traduza com uma
inigual plasticidade expressiva, e ao mesmo tempo tão justa, sem uma palavra a
mais, sem um juízo…
A grande questão, para mim, não está na maior ou menor
medida de mimesis que o poema contenha mas nesta formulação de Salah Stétié: «O
testemunho na circunstância, digo, na poesia, não é feito senão de palavras e é
esta mesma a sua principal fragilidade, aos olhos daqueles, os mais numerosos,
para quem a palavra é uma forma melhorada
do nada. Para os outros, entre os quais alguns poetas que nós colocamos no
topo da nossa estima, a palavra é uma
forma, penosamente diminuída, da totalidade pressentida». (L’interdit,
93, José Corti)
Para quem considera a palavra «uma forma melhorada do nada»
a poesia aparenta-se à decoração ou, nos casos mais ‘sérios’, a uma ourivesaria
com um ofício expresso em medidas mensuráveis. Daí que tão facilmente se caia
na tentação de definir parâmetros, ou a pressa com que se confunde realismo com
um género previamente convencionado.
Na verdade, nunca
pode haver “um retorno ao realismo”, sem se cair na literatice, dado que a
nossa ancoragem na “realidade” pode, se tivermos a energia e a “habilidade”
para isso, quanto muito abrir poros onde o não-poético abra janelas para uma
nova sensibilidade expressiva mais coincidente com a realidade pressentida, mas
este movimento para «o fora», para a totalidade, não pode ter estilos
pré-definidos. Por isso diziam os
chineses, escreve Kenneth White, que para captar a verdadeira poesia é preciso
encontrar-se face a face com um homem vivendo a três mil quilómetros de si.
Aquele que nos desampara totalmente as
marcas de reconhecimento.
Daí que talvez, para
mim, o maior realista do século XX se chame Henri Michaux.
Segue-se igualmente que não me admita como poeta “a quem se
consente”.
Só a minha solidão e a sua zona de laminação me guiam: não
porque entenda a arte e a poesia como espaço sacrificial mas porque no limite
há uma longitude de destino que me desobstrui – dom que é gratuito mas exige um
preço a que não quero nem posso furtar-me.
Sob risco de tudo se tornar decoro e venalidade.
Eu meti-me a dez mil
quilómetros. E se a espaços reencontrei a poesia, temo, por vezes perder a
memória, atolar-me no desprendimento que convoquei.
Mas o melhor de tudo foi
ter descoberto nesse desprendimento que há princípios mas não O princípio.
Quando queremos carregar com a bossa d’ O princípio – o “realismo”, por exemplo
- ficamos como Diógenes, no seu tonel, condicionados pelo mundo que procuramos
negar.
O que não quer dizer que
não exista a fidelidade, aos princípios. Mas isso é já outra discussão.
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