segunda-feira, 15 de abril de 2013

EM DEFESA DA OPACIDADE

Magritte

Os que escrevem com claridade têm leitores: os que escrevem obscuramente têm comentaristas”, escreveu Camus, e é uma daquelas fórmulas de boca cheia que se condena a si mesma ao ser repetida até diluir-se todo o sal que lhe cabia, a pouca razão que lhe assistia.
Camus é um escritor de quem sempre gostei, sempre que o releio não lhe encontro rugas, e adoro os seus cadernos, mas às vezes foge-lhe a mão para o design e escreve umas frases-efeito que condensam, como os slogans, a vontade que temos de não pensar, a nossa propensão a quedarmo-nos tão tranquilos como os mais sonhadores pântanos.
Eu não quero leitores, só quero comentadores. Por vários motivos e até ecológicos.
Faltava a Camus conhecer aquilo que Bruner, um dos renovadores da psicologia da percepção veio confirmar: somos incapazes de nos contentarmos em ver sem inventar, entre outras razões, porque sem inventar não vemos nada. Não existe uma boa leitura e compreensão das coisas sem inventarmos um pouco, i. é, sem acrescentarmos algo ao texto com que lidamos. O verbo da tauromaquia, lidar, parece-me o mais exacto para definir a nossa relação frutuosa com um texto, dado implicar-nos: não é possível face ao touro ficarmos sem reacção.
Mesmo para compreender algo, dizem-nos os estudos da psicologia cognitiva, temos de inventar, temos de integrar a informação recebida num mapa mais geral que é o da nossa interpretação do mundo, ou seja, temos de improvisar como no teatro ou face ao paquiderme na arena e nos redesenharmos nisso, a fim de percebermos intrinsecamente algo.
Decorre daqui que não existe leitura sem a inscrição do leitor, a sua imersão no texto que, afinal, “completa”. A identificação não é, por conseguinte, apenas plasmarmo-nos numa personagem ou num enunciado que nos é modelar mas também a sensação de que colaborámos para a construção do texto.
Só é passiva a nossa leitura quando o texto se encerrou em si, estabeleceu os seus limites e se apresenta como túmulo e até como póstumo.
Vou buscar dois exemplos que já coloquei num texto mas que, por servirem exemplarmente o que quero dizer, não me cansarei de repetir:

«Já dos versos do poeta renascentista espanhol Garcilaso de la Vega se dizia serem tão obscuros que havia que entrar neles com archotes, para entendê-los.
Na verdade, a poesia aponta o seu binóculo a um conteúdo comum para pesquisar uma nova escala e falar do desconhecido. Tentar dar uma forma inteligível ao desconhecido não terá naturalmente tradução simultânea para a linguagem coloquial. Aliás, apenas a comunicação publicitária é que faz uso de uma linguagem já testada. O que é que nos dá a comunicação publicitária? Flamengo, com embrulhos extraordinários, mas Flamengo.
Outra dificuldade se apresenta. A poesia do século XX, realiza uma segunda operação que cansa o leitor: o poema auto-reflecte sobre os seus processos criativos e a linguagem. No entanto, repare-se: o prédio do 33 não se ergueu sem andaimes. De igual modo, o poema não comunica sem montar os seus andaimes, a estratégia de como comunicar: daí que todos os poemas, apesar de veicularem um conteúdo, só respirem pela relação que estabelecem connosco, tentativamente.
Poemas que nos comuniquem a emoção causada pela morte de um filho, a beleza da namorada ou o desgaste do tempo são aos milhares, raros são os que nos transmitem também essa nova que é a experiência do poema e nos projectam como leitores para um outro lugar onde pressentimos, pela palpitação do verbo, uma superação do tempo e da contingência que provocou o poema.
A arte nasce da contingência (das coisas que acontecem à nossa volta, das alegrias, sarilhos, dramas e situações em que a vida nos atola) mas opera uma sublimação e não uma mera transcrição. O poeta surrealista Paul Eluard revela-nos o que é a sublimiçao ao definir o mecanismo do poeta deste modo: «o poeta quer falar da mulher que ama e fala de pássaros, quer falar da guerra: fala de amor, tão pouco conhece o poeta o título do seu poema senão após tê-lo escrito...».
Deduz-se obrigatoriamente daqui que não se fazem poemas sobre o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, as escolhas sexuais, mas com o sentimento, a guerra, a paz, a liberdade, o amor ou o ódio. Esses fluxos emocionais desembocam no poema como um feixe de energias e não como conteúdos em moldes pré-formatados. Aliás, o poeta distingue-se – diz o filósofo Rafael Argullol, e nós concordamos - por ser, não exactamente o homem mais sensível, mas antes aquele que atraído pela voragem do acontecimento consegue distanciar-se até poder articular em palavras que lhe sejam próprias.
Voltemos agora ao problema sobre a dificuldade de leitura dos poemas, ao seu hermetismo e ininteligibilidade. Talvez o problema radique noutro lado. Esperimentemos ler um trecho de um poema sofrível de José Miguel Silva, poeta de quem habitualmente até gosto. O poema chama-se Feios, Porcos e Maus, e diz assim:” Compram aos catorze a primeira gravata/ com as cores do partido que melhor os veste./ Aos quinte fazem por dar nas vistas no congresso/ das juventudes, seguem na caravana das bases,/ aclamam ou apupam segundo o mandato das chefias (...) Aos trinta e dois e bem o momento de começar/ a integrar as listas, de preferencia em lugar elegivel,/ pondo sempre a vileza em primeiro lugar. A partir/ do parlamento tudo pode acontecer: director/ da impresa municipal, coordenador, assessor de (….) No final, para os mais afortunados, pode haver nome de rua,/ com ou sem estátua, e flores, fanfarras de formol». Assim que acabamos a leitura, podemos voltar a cabeça no travesseiro e adormecer, absolutamente indiferentes à sorte do poema, que verteu o seu conteúdo sem estabelecer connosco uma relação. O poema deu-nos a sua mensagem, mas como num comunicado, no momento seguinte está esquecido. O poema não passa de uma “coisidade” exaltada.
Se, pelo contrário, lemos este trecho de Herberto Helder (que também tem poemas menos conseguidos): «Minha cabeça estremece com todo o esquecimento./ Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. / Falo, penso./ Sonho sobre os tremendos ossos dos pés./ É sempre outra coisa, uma/ só coisa coberta de nomes./ E a morte passa de boca em boca/ com a leve saliva,/ com o terror que há sempre/ no fundo informulado de uma vida.» somos sensibilizados por uma significação radiosa, mas dupla, que nos escapa à primeira e obriga a reflectir e a passear com o poema nos escaninhos mais arejados do cérebro até conseguirmos que o tempo nos dê a resposta a cada uma das metáforas que nos intrigam no poema.
A inapreensão ou a incompletude da nossa leitura vai perfazendo um trajecto, onde nós e o poema fazemos «um», no perpétuo vaivém de uma relação. E como a nossa inteligência sofre da ilusão entranhada de que temos de ver «tudo claro» voltamos ao poema que nos intriga várias vezes, dando conta de que em cada leitura obtemos uma resposta diferente para o mesmo. E então subimos várias vezes as escadas do 33 só com este poema a jogar xadrez conosco no nosso íntimo, e de cada vez que tornamos a descer as escadas a configuração fisica das escadas está diferente porque o poema, com as inúmeras perguntas que nos colocou, nos transformou, provocando uma mutação, a tal conversão semiótica.
O poema absorve-nos, transforma-nos, vai incubando em nós que tudo é outra coisa para lá das aparências e em cada limiar abriu novas janelas. A mesma janela que se abre quando dançamos e não somos mais nós que dançamos, e a dança que dança em nós, ou a mesma janela que se abre quando tocamos piano, e damos conta de que não somos mais nós ou as nossas mãos que tocam, mas é a música que se serve das nossas mãos para acontecer. Por muito que nos custe, tanto a beleza como a arte ou o amor acontecem mais quando o “eu” está ausente. Agora para isso precisamos de estarmos desnudos, e e necessário estarmos implicados na relação – na que, por exemplo, o poema estabelece connosco. Temos de participar.
Julgo ser nesta diferença que tudo se joga, não no facto do poema ser acessível ou não, simples ou complicado. Um poema que não altere a nossa percepção do mundo, do corpo, do tempo e dos outros, que não incuba em nós, serve para quê – para além de servir a vaidade do seu autor? O que é complexo não pode deixar de ser complexo – e para visitarmos esses “novos mundos” apenas precisamos decidir se queremos ser leitores exigentes, que admitem a longa duração, ou voláteis frequentadores do shooping, se queremos ser velhos de espírito vivo e gaiteiro ou jovens que o tempo gastou como as borrachas.»

Vemos então como a frase de Camus é não apenas terrorista como, em nome da clareza, premeia a facilidade e todos os equívocos.
Cada texto conduz a uma “clareza” natural, dentro da sua constelação. A clareza de Camus não é a mesma de Blanchot, a obscuridade em Herberto não é a mesma que em Gôngora. E obviamente que não desejamos a clareza de Dan Brown porque a esta – como a toda literatura montada em fórmulas e estereótipos – lhe faltam as sombras.
Por isso, contra o meu querido Camus, nesta frase tão acarinhada pelos burocratas da língua, sempre que vejo algo que não percebo fico todo contente, engancha-se aí um porvir, um novo relacionamento. Não entender algo faz dilatar o meu horizonte, desoprime-o dos meus parcos limites e até da vaidade destes. Evidentemente que se trata de não entender algo que, não obstante, irradie uma inteligibilidade que me escapa ainda, como uma luz entre frinchas – e não de um texto que à partida seja uma burla, uma coisa que a prática detecta facilmente.
Por exemplo, durante anos, o enfrentamento da erosão africana levou-me a um afastamento em relação a dois autores que em Portugal gostava muito, Char e Gamoneda. Aquela mescla metafórica parecia-me de repente artificiosa face à realidade que se me opunha (percebi aí que os lugares e as contingências acabam por ter muita importância em relação às leituras que escolhemos). Tive de ler uma biografia de Char e de me comover com a particular dignidade daquele percurso de vida para sopesar cada metáfora na sua poesia, grave e necessária, e não um mero jogo ornamental – tendo redescoberto o poeta com outro gosto e até outro proveito.
O Char, tão obscuro, e de que até o Camus, ironicamente, foi um dos primeiros comentadores, abriu-se-me então em matizes de uma claridade que não prescindia das suas sombras para ser.
Por isso, ao arrepio de Camus, eu confio mais na interpelação de um comentarista do que na passividade de um leitor, embora, neste universo pós-simbólico, a literatura tenda a uma literalidade que ofusca e afinal nos faça não ver por nos aproximar do amorfo.  

 

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