Acontece que por vezes
quando passamos um livro nosso a alguém que apreciamos muito acabamos por reler
o livro, na tentativa de adivinhar o olhar do outro, porque cada um de nós lerá
o texto de forma diferente. Foi o que me aconteceu com o meu livro de sonetos. Bagagem não Reclamada (no prelo), do
qual acabei por extrair estes tercetos, muitos remontados, mexidos em relação
que está no livro. Aqui ficam:
é extraordinário
como o mar neste poema
destelha o firmamento.
Os olhos crescem a pino
à medida que o farol se
afoga,
numa muda expectativa.
As nuvens tangem
violáceas o mar.
As gaivotas não
perfilham estes tons.
Pelo menos, agora não.
Deixou de estar cingida
a veia.
Esburacados pelas
cápsulas vivas de Deus
sai-nos tão caro a asa
como a obscuridade.
o silêncio entra e
rouba primeiro os vínculos
e depois a prata.
«Transforma-se o amador
na coisa amada?» Onde
se lê coração ler errata.
Eu que não fui donzela,
ave ou eucalipto,
sequer a surda sarda de
Empédocles,
fui a Greta de
Heraclito.
É inútil dizer que não:
Deus soprou-me o sangue
pela casa. Mas não
estou só. Desde Baudelaire
que os anjos derramam vinho sobre a mesa.
No labirinto da pele
veia que se deite logo
arrefece
se outro coração não
lhe deita a mão.
Secreto condomínio, o
de cada veia
no seu galho. E grave:
com um nome
morto que
assobia dentro em ti.
A vida a soldo bem nos
delata e despeja
asco a asco no couto da
manha, pois cego
que não apalpa é cego
imaturo,
Há lá consolo. Mesmo
Homero que criou
a telenovela e crivou de
rosa as manhãs
e deu nome aos direitos
de autor, tem frio.
Só a ti alarmava a
visão do coxo
que atravessa gota a
gota a ínsua
das
horas?
em ti era normal, o
outono quebrava-te as mãos
pelos pulsos e
amareleciam, irreplicáveis.
Mas pela primeira vez
não se segue o armistício.
Outras não rolarão
fácilmente pelo parapeito
das manhãs: a tua
cabeça cabe inteira numa mão
e pende do ramo tenro
com que abraças um afligido silêncio.
Viste um adoloscente
amolar a navalha na alma do amigo?
Crescer reclama uma
tença ao nome. Deixa, o horror
não invalida os
passaportes e a neve chegará, ou o pó.
Não confies na manhã.
Não se pode confiar num garrote
que artéria a artéria
nos estanca. Confia mais
no que castiga a noite,
na sede refractária aos teus três goles.
Há trinta anos sem
desforra. Adestrado, embrutecido
pelo trabalho de erguer
andaimes em torno de um ciclone.
Sem desforra, o medo enverniza
as paisagens.
Acordas enroscado de
medo no sofá. Escuro: onde tens a cabeça?
Mantem-na à distância,
que chega dos dias aziagos
onde a morte é a cauda
do Leviatã rasgando o nevoeiro.
Palavra que te
preexiste, passadiço do olhar de Deus
para os viços internos,
e, antes de ti, cacilheiro
do Espírito.
Palavra-só-látego do mundo que em ti se desatraca.
Não contrair ausências,
o espírito de
geometria,
a culpa
de Caim.
A criança-pigmento que
de longe
te olha enluva
as tuas
mãos no nevoeiro.
Virá o tempo da
penúria, o tempo
que põe o TGV no lume,
lapidará
corações e trará o
rasgão às sombras.
É um homem que se
debate, mirrado
como o amendoim intocado.
Há muito que nele o silêncio
não está síncrono – a
alba restringe o âmbito.
o tipo que tem na ponta
da língua
o instante em que o
primeiro osso desata
a carne,
supondo que é a sisa.
Esta
branda humildade da despossessão
é o mais próximo da
arte. Pena a melanina e ir o grão
ao olho afogar o mar em
espasmos milimétricos.
Até onde enxergo: breu,
e no gume
da palavra, persistente,
o sangue,
que a
vida não sai barata.
Na infância, a Noite
era uma
senhora muito
encarquilhada
que varria a luz até adormecer
de cansaço.
Quando eu morri a minha
alma foi devolvida,
como a maçã que liberta
do pedúnculo
suspende naquele hiato
ideia de terra ou de céu.
Só quando a linguagem
flutua sobre o velcro da dúvida
– discreto coração albino
– é que percebes a radiação fóssil
Deus que se afasta para
que tu sejas luminescente vocação inacabada.
Um velho tanque, película
de água e limos.
A rã salta – splaasch!
Depois,
Deus é quem sabe!
assim pernoita a vida: o
alvo crisântemo
acorda a neve. E
depois, faz-se fundo
ou a escarpa sobe à
boca e brilha – radioso paul.
Vi, numa fábrica de Seda
em Benares, rostos
que pareciam pétalas sem
osso
o mistério da Seda é a
imediata imersão
do tacto no nome de
Deus – alastra,
como o leite no chá, de
uma vez.
A Seda é uma chama fria
que arranca as mãos
dos enganos. Envolve os
cabelos como uma nova aurora
e lava nos olhos os
quistos da memória.
Atroz, a trepadeira da
dor. Escava na fronte,
desinforma as
precauções. Atroz, como o bico da narceja
que imprime na carne da
ameixa certificado de qualidade.
É assim que vejo a
chamada da morte:
uma Seda alumia num
átimo as claraboias
interiores, selo lambido
por um cego.
Reluta, a alma. Teme
como a uva ser pisada
em vão.
diviso a linha de costa
e, como Ulisses,
atado ao mastro por uma
nesga
de
cobardia, renuncio.
Até onde consigo
discernir sobrevém
nele uma torrente onde
o tempo, esse furão
despeitoso,
se dessedenta.
O gafanhoto que me
devora a alma é mais temente
que o sangue que
orvalha a morte – tão demente
e inciso que só uma
escassez de pontos luminosos nele frutifica.
e ele sabia, criatura
de escrúpulos,
que sem ela faria do
coração
uma
taberna de maus vinhos.
Gosto da secura dos
indigentes, a cismar
nas melhores beatas, do
acinte janota com que enrolam as mortalhas,
num renovo: vejo aí as
qualidades da terra.
As palavras usam-me os
ossos do crânio como trem
de aterragem. Presas como
o grasnar do pato,
da cloaca
ao bico - pelo sopro.
Porque tudo dá fruto. Sonhei
com um país de gagos.
Era o meu. Os gagos
nasciam das árvores
e amavam-se lambendo o
intervalo das sílabas.
O mano a mano: eu ergo o
poema e Deus fuma-o,
remexe a cinza no seu
cinzeiro e sopra-a
sem que a nívea nuvem
lhe garrote os olhos
Remo. Enlaçados ao meu
bote, quatro jangadas com espectros.
É um espectáculo
inigual. Adiante. O vento sussurra-me que o caminho
é invisível. Remo, na
noite simultânea. Até quando? Adiante.
Um lugar que não
desincorpora e que mesmo no colapso
se cola à pele do
observador, faz dele o seu arpão:
eis, janelas de um
cego, a lídima extensão do poema.
– quem não viu nunca
poderá adivinhá-lo; que se acorda para dentro
na rota do milagre e a
escarpa não tem meio, apesar dos fiéis
rogarem em círculo como
os cães, apesar do jacente salto cabisbaixo.
Preocupa-me, sei lá! Em
torno
ergue-se a torre aluída
e, por lapso,
a língua
comeu o gato.
O vento,
afogado
na luz
até ao
pescoço,
Por dentro e por fora:
o coração já não é
penhor. Depois morre
de pura
solidão entre os plagiadores.
Enruga a pele porque os
ossos – como a glicínia
que é só haste ensarilhada
em si mesma –
desirmanam
em estalidos vãos?
Dobra o seu nome na
língua: limoeiro depredado
de ossos e vísceras.
Doba o seu nome na ave:
gran secreto es el
morir.
Ao longe, no
relvado, debaixo
dos verdes cinzas das
oliveiras, duas gaivotas despedaçavam
um pombo ainda vivo. Um
dia de mortes nunca vem só.
Tens em conta que o
suporte da palavra
é a avalancha, que te
foi dado nasceres
a meio do
aluvião?
O coração
faz
trapézio
no meu
corpo.
ir de cana, pintar o
sete, erguer em palafita sobre delgadas patas de aranha
o tabuleiro do medo ou
ir-lhe à rata abocanhar o queijo grié
– propósitos que
esculpem uma vida na sua jaula.
O sombrio semeador de
escadas sonhava ouvir O Escuro
bramar-lhe ao ouvido.
Estava tão alto O Escuro.
Feridas
que se coçam até ficarem perfeitas.
Mas abrir um livro ao
acaso e capturar um látego:
uma papoila, uma patada
na nuca, os lábios
que
respiram contra o muro sem rancor.
Na lágrima da viúva
via-se um velho cisne que tossicava
muito. Ela escamava à
bancada, enganchando a unha na guelra. Lembranças
de miúdo, ainda a alegria trotava no seu pequeno porte
exangue.
estive sempre cego,
embutido
na massa da noite como
uma passa
nos restos
de bolo-rei que Deus dá aos corvos.
–
quem nos atraiu ao ardil de imaginar
que, só quando o poema
é diáspora de si, se abrem as
torneiras do infinito?
Os desertos crescem e eu, inepto para matar dragões,
rezo.
…………………………Por serem
As águas
sonâmbulas voam águias
…………… o vento afasta o ar.
Eis um rio que goteja
e se precipita para o
alto,
em hastes tenras…
É que me imagino morto para
o mundo, dizia Ponge,
em quem o trânsito de
ser cravo sabão, ostra, se tornou natural,
como em mim a
atrapalhação de buscar em cada palavra o silêncio do faroleiro.
Fala-se do Tempo, um
crânio que se locomove a vapor
contra a evidência
galopante das imagens.
O abismo alça-se,
dentro, anterior à carne. Fuck!
cada vez que mata
a Morte reencontra a
sua infância,
cada vez que te
trespassa alguém tu perdes a tua.
Há vezes em que só
compreendo as palavras e noutras só os pensamentos.
Quando coincidem como
dois carris casados pelo ritmo
não sei se sou o tronco
do carvalho se a copa se a cotovia que deles se afasta.
Tabuinhas de ossos e
remoinhos profundos fazem cair a carne
nas frinchas. O caos já
foi uma região com mapa
quando me
assobiou o teu nome.
Palavras que conversam
entre si
como as nuvens e os
rios:
o fogo
preso com que me laçaste.
este jeito descuidado,
algo banana,
que temos de amar no
outro a ferida
que o
preserva.
Uma luz caindo como cal
sobre os ombros em fuga
– porque só o ovo
existe, a galinha é o seu sonho –
conduz-me ao muro dos
teus olhos.
Não a poupes, gasta o
mais possível a tua morte. Palpa-a,
deixa que radie, e que
esbraseie como tudo o que envolve
a pedra: o ar, o pavio da
pele, o sangue cujo frémito arboresce a noite;
Enquanto a luz escavar
um túnel na direcção dos crisântemos
que bebem a tua sombra,
enquanto acordar ao teu lado
esquecido do alarido na
boca do Leviatã, outro fim de mundo não haverá.
Sem dar azo a mais
destrinças,
posta a alma ao lume (bem
ou mal passada?),
a treva
encarvoa-se de silêncio.
Esgarça-se a nuvem, é
uma questão de sintaxe - sem esta
há lá emoção
duradoura!, nem seria a cerejeira reminiscência
nas costas
da cama que te ouve em blandícias .
Olá, pai, a coisa está
preta e morde e hoje nem toda a beleza
do mundo escapa ao descontentamento.
Saudades.
Já viste por aí algum
monte de laranjas coberto pela neve?
Tal como países
terceiros resgatam (com que clemência?)
as Soberanas de
primeiros e segundos, capacito-me
que de pátria para
pária a diferença está na dívida.
Conheço o mal, é meu
vizinho, às vezes cativa-me
ao espelho e
depois tenho de descolar da imagem
veia por
veia, poro por poro, daninho.
O que não mata engorda,
dizia-se na minha meninice
de letra vadia, na
infinita batalha entre paisagem e caligrafia.
É de espantar que
Mercúrio, tão mais perto do sol, tenha gelo?
Procura-se leitor que
salpique a sua actuação com crisântemos,
em vez de desairoso
tropeçar na própria sombra. Procura-se
leitor, que aguente
mais que água tónica ou a acédia que atomiza.
Operamos no mesmo
circuito, eu e o leitor,
mas cabe-me o carro sem
travões. A frio, imparcialmente,
o leitor exige programa
de protecção às testemunhas.
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