terça-feira, 30 de abril de 2013

CONVERSAS EM FAMÍLIA 3/ ADENDA

  
 Ontem a misantropa Joana Emídio Marques apresentou o livro da Ralina, Manucure.
Desempenhou-se com a presciência de quem nasceu para comer conquilhas mas não para autopsiá-las, deixando intacto o seu sabor. Maior sabedoria não há.
Estiveram bem um para a outra, o livro da Ralina, giro, desopilante, com electrocussões inside, e o texto da Joana, que lhe pontilha as linhas de contorno, mantendo-o livre.
Lia o texto da Joana e soltou-se-me esta ínsua:
 
 AS LÁGRIMAS DE JOANA
 
O coração procura debalde o anel.
De balde lhe tira o unto
Antes de o ver,
Invisível como no primeiro dia.
Lá fora, um grilo canta,
De bronze – diria a outra.
Empolga-a a manucure,
No aluvião da carne.
De chávena em chávena, galinha o põe.
 
 
Do que nos valem as casas de banho e as estantes que repousam em frente. Levanto-me à noite para dar vazão à tagarelice do corpo e como sempre pego num livro ao acaso, para o ocaso sentado. Calhou o Mito de Sísifo, de Camus.
Abro-o, na desordem do sono, e leio this;
«… eis a estranheza: darmo-nos conta de que o mundo é «espesso», entrever a que ponto uma pedra é estranha, nos é irredutível, com que intensidade a natureza, uma paisagem, nos pode negar. No fundo de toda a beleza jaz qualquer coisa de inumano, e essas colinas, a doçura do céu, esses desenhos de árvores, eis que nesse minuto perdem o sentido ilusório de que os revestíamos, agora mais longínquos, agora mais longínquos do que um paraíso perdido. A hostilidade primitiva do mundo, através de milhões de anos, regressa até nós. Durante um segundo deixamos de compreender esse mundo, visto que durante séculos só entendemos as figuras e os desenhos que lá púnhamos antecipadamente, e que de hoje em diante só nos faltam as forças para utilizar tal artifício. O mundo foge-nos, porque se transforma nele próprio. Esses cenários mascarados pelo hábito tornam-se aquilo que são. Afastam-se de nós.  
(…) Chego finalmente à morte e ao sentimento que dela possuímos. Sobre isso, tudo foi dito e é uma questão de decência evitar o patético. Nunca, porém, nos espantaremos suficiente com o facto de toda a gente viver como se «ninguém soubesse». É que na realidade não há experiência da morte.»
 Eis porque «o realismo» é uma treta.
 
 
 
 
 

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