Desempenhou-se com a
presciência de quem nasceu para comer conquilhas mas não para autopsiá-las,
deixando intacto o seu sabor. Maior sabedoria não há.
Estiveram bem um para a
outra, o livro da Ralina, giro, desopilante, com electrocussões inside, e o
texto da Joana, que lhe pontilha as linhas de contorno, mantendo-o livre.
Lia o texto da Joana e
soltou-se-me esta ínsua:
O coração procura debalde
o anel.
De balde lhe tira o
unto
Antes de o ver,
Invisível como no
primeiro dia.
Lá fora, um grilo canta,
De bronze – diria a
outra.
Empolga-a a manucure,
No aluvião da carne.
De chávena em chávena,
galinha o põe.
Do que nos valem as
casas de banho e as estantes que repousam em frente. Levanto-me à noite para dar
vazão à tagarelice do corpo e como sempre pego num livro ao acaso, para o ocaso
sentado. Calhou o Mito de Sísifo, de
Camus.
Abro-o, na desordem do
sono, e leio this;
«… eis a estranheza: darmo-nos conta de que o mundo é «espesso»,
entrever a que ponto uma pedra é estranha, nos é irredutível, com que
intensidade a natureza, uma paisagem, nos pode negar. No fundo de toda a beleza
jaz qualquer coisa de inumano, e essas colinas, a doçura do céu, esses desenhos
de árvores, eis que nesse minuto perdem o sentido ilusório de que os
revestíamos, agora mais longínquos, agora mais longínquos do que um paraíso
perdido. A hostilidade primitiva do mundo, através de milhões de anos, regressa
até nós. Durante um segundo deixamos de compreender esse mundo, visto que durante
séculos só entendemos as figuras e os desenhos que lá púnhamos antecipadamente,
e que de hoje em diante só nos faltam as forças para utilizar tal artifício. O mundo foge-nos, porque se transforma
nele próprio. Esses cenários mascarados pelo hábito tornam-se aquilo que são.
Afastam-se de nós.
(…) Chego finalmente à morte e ao sentimento que dela possuímos. Sobre
isso, tudo foi dito e é uma questão de decência evitar o patético. Nunca, porém,
nos espantaremos suficiente com o facto de toda a gente viver como se «ninguém
soubesse». É que na realidade não há experiência da morte.»
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