sábado, 13 de abril de 2013

SOMBRAS DE VELHOS COMETAS VELHOS COMO O MUNDO

                                                                   francesca woodman


Descubro ao acaso, abrindo um livro na minha propensão petisqueira, esta citação de Marx: ”Da mesma maneira que Lutero proclamou o fim do laico e do padre também a sociedade nova superará a distinção do Estado e do homem privado.” Teria Marx consciência da perversão com que as sociedades novas tomariam à letra a sua previsão?

 

Escrevi isto em 2006, no meu diário da altura, O Vento e a Escolta:

«A fraternidade está morta, posto a vileza, como previu Baudelaire, ter tomado o coração dos humanos: «O mundo vai acabar (...) (um dia) a mecânica ter-nos-à americanizado a tal ponto, o progresso terá atrofiado tanto em nós toda a parte espiritual, que nada, entre as fantasias sanguinárias dos utopistas, poderá comparar-se com os seus resultados positivos. Não será através das instituições políticas que se manifestará a ruína universal ou o progresso universal (pois o nome pouco importa), mas através do aviltamento dos corações» (citado por Octavio Paz no seu diálogo com Castoriadis).
Neste desnorte, engendra-se a vileza como o efeito colateral a perversão dos dois primeiros princípios.
Absolutamente fora de hipótese pensar noutro regime social que não seja a democracia e os seus enganos, mas não devemos fechar os olhos ao desolador e exaltante estado das coisas – oximoro comum a todas as épocas em que o definhamento da crítica antecipa uma mutação profunda, uma conversão semiótica (conceito a que voltaremos).
Mas é muito pobre a democracia que receia as diferenças e o reconhecimento de valores de intermediação.
África, neste aspecto, é hoje, a contrapelo, um extraordinário laboratório para estudar o que será a sociedade europeia daqui a 20 anos, quando o liberalismo triunfante tiver destruído os resquícios de uma regulação social nascida dos três princípios que a Revolução Francesa consagrou.
A sociedade africana é asperamente estratificada, lancinante nos contrastes, e dissemina-se em sistemas paralelos, quer de vida, quer económicos.
Em Maputo, sobrevive-se com 200 dólares mensais e com 500 ou 1500. Não se viverá evidentemente com o mesmo desafogo, mas o preço dos bens e da alimentação é muito variável, consoante o bairro e o comprador alvo. O preço de uma porta de grades varia, consoante estejamos no bairro do Xipamanine, na periferia, ou em Sommershield, o bairro rico. Os materiais, o trabalho e o resultado são o mesmo, o preço é que diverge.
Outra coisa se pressente, nestas compensações por estratos. É uma sociedade que devido às restrições orçamentais impostas pelos organismos monetários internacionais perdeu quaisquer veleidades de uma futura equidade social. O progresso social está estabelecido pelas quotas que favorecem a boa consciência da hipocrisia internacional, mas não excede esse quadro. Quando a educação devia ser a aposta preponderante para se semear o futuro, as imposições do endividamento internacional dão lugar a paradoxos tonitroantes, como o de se abrir um ano escolar com metade das vagas de professores por preencher, por falta de orçamento para pagar aos docentes, como aconteceu o ano passado em Moçambique. Que o jornalismo internacional não denuncie estas contradições que o FMI gera dá a medida do servilismo em que se acantonou a maior parte da comunicação social.  
Combater a pobreza em África, no figurino actual, é um enorme alibi para milhentas negociatas. Os programas de combate à pobreza branqueiam as verdadeiras intenções do que se congemina na sombra: domínio e saque. Não sou eu que sou cínico, é a realidade, ainda que não esqueça que, “desviado” algum do dinheiro para as funções que o justificaram, se se salvar uma só pessoa que seja temos razões para nos congratularmos. Mas temo que da mesma maneira que os programas para erradicar o HIV/Sida fomentam hoje em África uma gigantesca rede de negócios que demasiadas vezes se esquece da meta - o que explica a boa-consciência com que se acha normal que 80 por cento do orçamento atribuído anualmente ao CNCS (Comissão Nacional de Combate à Sida) seja gasto em salários da estrutura, sobrando 20 por cento para os objectivos – , temo que aconteça algo de semelhante com a questão da pobreza.
Aliás, só há um modo seguro de um país pobre se saldar num sucesso a prazo: apostar numa indesmentível educação de qualidade. Exactamente o contrário do que se pratica hoje em Moçambique. Como se estivessem deliberadamente a preparar um país para a servidão. Entretanto, concretamente, na sua sanha liberal, o governo demite-se de quase tudo, entrega a iniciativa à sociedade civil (leia-se empresários de conotação próxima do poder, os mandantes) e apesar desta se mexer pouco o governo alheia-se.
É o que se passa na cultura.
X foi convidado para organizar uma edição em Moçambique do Festival de Cinema da CPLP, pois este ano passado cabe a Moçambique a sua organização. Perguntou, muito bem, que dinheiro é que há para gerir? E responderam-lhe. Isso é você que tem de o obter. Eu?, perguntou o espantado. Claro que a edição do Festival desta vez não se cumpriu, mas se ele tivesse puxado pelos brios e ido arranjar umas massas aos doadores…
Este debilitamento da consciência de uma responsabilidade social já se verifica actualmente, segundo as teses do sociólogo Michael Freitag, no subsolo da dinâmica que rege as sociedades europeia e americana, mas nestas existe ainda uma série de mecanismos e de instituições cujo carácter retardam ou amortecem o choque. Mas a onda de choque acentuar-se-á logo que tiverem entrado em colapso a segurança social e os fundos de reforma, e que as leis laborais conseguirem contornar todos os direitos adquiridos ao longo dos últimos duzentos anos. Então o fosso entre classes conhecerá um novo patamar e quebrar-se-á um certo equilíbrio burguês, que calibra ainda a vida comunitária na Europa.
Ressaltarão aí as assimetrias sociais que hoje se patenteiam no continente negro, e quando as pessoas para sobreviver se virem obrigadas ao uso intensivo das manhas e dos subterfúgios das economias paralelas (não raramente mascaradas em módulos micro-económicos), por uma vez África estará tristemente na vanguarda.
África é hoje uma imensa comunidade que vive da gorja. Quando a Europa acordar no meio da necessidade de viver da gorja dará conta da insídia de carácter que impôs aos outros, àqueles a quem saqueou, e, anestesiada pelos ‘esquemas’, sentar-se-á sobre os seus furúnculos.»
Deprime-me saber que 7 anos depois a Europa começa a viver da gorja e senta-se sobre os seus furúnculos.

 

Leio em Traité du Tout-Monde, de Édouard Glissant: “Douve tocou-nos, enquanto primeira palavra de um poeta da nossa geração que sugeria, sem o afirmar, que a poesia é conhecimento, mesmo se este conhecimento passa por aquilo a que Bonnefoy chamará mais tarde “o Improvável”. Creio que este foi também, o primeiro livro de poesia contemporânea que nós elegemos como sendo ao mesmo tempo total e tão pouco totalitário, e tornou-se evidente que o corpo de Douve, objecto da poesia, obscuro e iluminado, dividido mas constantemente recomposto, afigurava-se-nos uno e transfigurado pela multiplicidade que o atravessava. “ (  )
A mim também me toca, e até mais que o livro de Bonnefoy, a ideia de que a poesia e conhecimento sejam indissociáveis, mesmo que improvavelmente. E este pequeno ou grande desaire parece-me mais conforme ao poema do que a gentilíssima arte do protocolo em que se vem transformando. 

 

Mercado do povo. Há uma mosca dentro do gelo que me aclimata o uísque. Nada que se assemelhe às ratazanas que vi numa reportagem televisiva sobre as cozinhas do Hospital Central. Afinal, o que é uma mosca, pequena, das que cabem na cova de um dente? Carbono. E o gelo não derreterá até ela, enquanto eu acabo a dose. Pode ainda ser reaproveitada e ir adornar outra pedra de gelo posterior. É uma questão de design. E estará morta ou, exposta ao sol, reanima?   


 
Uma fábrica de anjos albinos: escreve Jacques Lacarrière. Que não conhecia as ruas de Maputo, se não saberia como esta sua imagem tem nela um surpreendente esplendor. 

 

Em Le Roman Vécu, Alain Jouffroy narra, com a inconsciência dum verdadeiro cabotino, um episódio que surpreende quem se habituou a ver neste poeta um homem lúcido e avisado. Viveu cinco anos perfeitos com uma mulher, até que a filha dela, que ele ajudara a criar, foi morta em Los Angeles, para onde tinha ido estudar. Vítima de violação. O desconcertante, para Jouffroy, é que a rapariga não seguira o lema de Lao-Tsé que ele e a mãe tantas vezes haviam recomendado, “Se a violação é inevitável, folga e goza!”. E põe ênfase no espanto: «Non seulement Nina était d’acord, mais elle était capable, par son intrépidité, sa fougue, son indépendance, de mettre en pratique ce très sage conseil. Rien ne nous a jamais expliqués ces cris…» (pág.51). Fala dos gritos com que Nina tentou resistir ao violador e que o levaram ao impulso de a matar. Jouffroy esqueceu-se de uma coisa fundamental: da dignidade do gozo!

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