domingo, 28 de abril de 2013

CADERNO DE ABRIL, MISCELÂNIA

                                                                      FOTO DE VITOR CID


Na entrada 162 de Pensar de Vergílio Ferreira, um livro que o meu amigo Helder Moura Pereira me enviou e que, definitivamente, é um livro para além de qualquer adjectivo, lê-se:
«-Quando é que arranca para escrever um livro?
- Quando atingir um ponto em que não seja eu a escrevê-lo, mas ele a mim.»
Não podia ser mais exacto. No meu caso. Eu escuso de forçar as coisas, não pega se ainda não está no ponto de me dominar. Por isso escrevo e leio várias coisas ao mesmo tempo, só uma das leituras me impregna, pois os livros também não se entregam em qualquer momento, e na escrita vou pondo o pé, simultaneamente, em várias torrentes, à espera que uma delas me apanhe e domine, conquistando a primazia, que digo, respirando em meu lugar.
Depois é o face a face com aquela inteligência não circunscrita que à minha frente, no ecrã, vai estruturando o texto e disseminando as suas linhas de força.
Eu colaboro com o texto depois, e às vezes até lhe imponho decisões erradas, ou uma ordenação consentânea, mas a energia é ele quem me empresta.
Nem a reconstrução do real pode ter outra motivação senão a que lhe é inerente, embora precise de um agente de fora, o vento, a temperatura, um acidente, o escritor, para fazer adoçar a polpa, mas é isso que somos: agentes secretos metidos em sarilhos que não dominam.

 
André Maurois conta que Valéry lhe disse “um dia que Shakespeare se tornou ilustre por ter tido a ideia, na aparência temerária, de fazer recitar por actores, no momento mais trágicos dos seus dramas, páginas inteiras de Montaigne. Aconteceu, diz Valéry, que aquele público gostava dos discursos morais”. É tão injusto como bem apanhado.


Num velho caderno que esteve perdido durante anos debaixo do frigorífico (como lá foi ele parar?) encontro um sketch que escrevi, esquecido de todo, que parte da seguinte premissa: uma agência de casamentos em Maputo, de negras com brancos (italianos,de preferência) que só tem albinos na sua agenda. Isto só tem graça em Maputo, mas aqui pode ter muita graça.

 
Meiguice é quando a mamã rata cria o gatinho.

 
Noutra página do mesmo caderno encontro esta nota: “o violino de manteiga”. Lembro-me ainda que isto se associava a Mozart mas já não sei como.

 
Por incrível que nos pareça, o sistema do medievo Dante era afinal muito mais aliciante que o grotesco aparato com que o mercado de massas nos impinge um turismo das emoções.
O conceito dantesco do homem como ser necessitado de uma metamorfose para adquirir no outro mundo uma forma definitiva e eterna, dava uma plasticidade transitiva à espécie humana.
Isto clarifica que todo o poema de Dante seja impregnado pela ideia de transformação. Nascia-se com uma forma para devirmos outra, como as crisálidas devém borboletas. O objectivo estava à nossa frente, e tudo podia acontecer. O ladrão Vanni Fucci, por exemplo, ao ser picado por uma serpente, converteu-se num monte de cinza; os luxuriosos tornaram-se estorninhos; os gulosos uivavam como cães; os suicidas em árvores; mas estes eram exemplos dados por Dante, cabia ao leitor agir no sentido de determinar o seu futuro avatar – o que releva é que a vida se desdobrava numa crença na capacidade de transformação.  
It´s wonderful, Não? Com a sociedade de massas, pelo contrário, somos conformados na origem, formatados por estereótipos que nos condicionam para determinados gostos e respostas, sendo-nos imprimida um tipo de personalidade consumista. Nela, o que importa não é aquilo em que nos transformamos mas o quanto podemos ser conformados. A pouco e pouco tona-se nítido: havia mais liberdade no medievo.

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