quinta-feira, 2 de maio de 2013

TRÊS RETRATOS A CARVÃO

                                                          Maria Velho da Costa

Catando em coisas velhas achei estes três retratos a oarvão que fiz há uns anitos bons para os jornais. Ainda não me apavora a sua azelhice, por isso aqui os posto:


A GEOGRAFIA INSURRECTA: HENRI MICHAUX

 
DIZIA Valéry: «O escritor verdadeiro é um homem que não encontra as suas palavras. Então procura-as.» Socorrendo-se do autor de La Jeune Parque, José António Marina tenta elaborar uma teoria da inteligência criadora e conclui que grande parte desta ingente tarefa consiste numa hábil gestão das restrições. Em nenhuma página do seu ensaio, que até é brilhante e sedutor, Marina cita Michaux. E percebe-se: Michaux é o antónimo de Valery - um homem sem restrições espaciais, geográficas, rítmicas e linguísticas. Incatalogável, como o classifica Ernesto Sampaio, no oposto do espírito da geometria.

Henri Michaux sobrevoa todos os aparelhos de medida e, insurrecto xamã, seria o melhor corrector para a célebre aposta entre Alice e a Rainha de Copas sobre o número de quantas coisas impossíveis será possível imaginar antes do pequeno-almoço.

Com Michaux é seguro: nele, os pequenos-almoços são ainda remanescências do sonho, périplos onde as viagens da memória desenganam coordenadas para se tornarem trajectos da metamorfose, prodígios à velocidade do pensamento, sobretudo do inabordável. Não se trata de um paradoxo mas de uma celebração do contágio, de um efeito de plasma.

«Terá sido a China que me transformou?», interroga-se Michaux em Um Bárbaro na Ásia. «Sempre tive um fraco pelo tigre. Quando via algum, alguma coisa mexia comigo, sentia-me logo em consonância com ele.» Em consonância, isto é: derramado na forma do outro, encarnado no ritmo que a sua velocidade interior opera. Por isso, no mesmo livro, lê-se a dado momento: «Menos alguém é abordável, mais vida interior possui.» Com Michaux não há uma cicatriz ontológica - o sismo, ainda que satisfatório, é uma ferida na água, um centro desenfreado e inúmero...

Equador, 1929, Um Bárbaro na Ásia, 1933, Voyage en Grand Garabagne, 1936, Au Pays de La Magie, 1941, Ici, Poddema, 1948, La Vie dans les Plies, 1949, ou, noutro registo, Infinito Turbulento, 1957, Les Grandes Épreuves de l'Esprit et les Innombrables Petits, 1966, e Misérable Miracle, 1972, são alguns títulos onde Michaux explora um novo atlas e uma nova descrição da matéria do mundo e dos seus seres. Nos primeiros volumes ainda leva a cabo uma espécie de etnografia imaginária a partir de espaços pré-existentes. Voyage en Grand Garabagne inaugura uma nova etapa: a de um Gulliver que vasculha nas profundidades do sonho para tecer reportagens impossíveis - com a mesma virtuosidade na língua de Raymond Roussell, mas (arrisco) com maior visionarismo e sageza.

Nos últimos livros assinalados, as viagens efectuam-se por dentro, com o espírito soprado pelas drogas até a paranóia das sensações desminar o calcinado território do «eu», essa ilusão que nos lança no «abismo da inconsciência quotidiana». Há, em meu entender, uma particular afinidade entre esses dois modos de viajar, tendo por cicerone uma geografia referenciável ou as drogas. «Para quê viajar quando uma rima faz nivelar uma montanha, quando um adjectivo povoa um país, quando uma assonância faz oscilar a Terra inteira?», interrogava-se Michaux em Passages, 1950.

A vida está aqui inteiramente assumida nas pregas, no trajecto, que é também o da linguagem assombrada. Quando, para os habitantes do Grand Garabagne, é preferível deixar de existir a respirar mal, ou quando o País da Magia é descrito como um sítiorodeado de ilhotas minúsculas que são bóias - «Em cada uma delas há um morto. Este cinturão de bóias protege o País da Magia, serve de sentinela para os seus habitantes e avisa-os quando se aproxima algo estranho» - fala-se no fundo da mesma «inabitabilidade psicológica». A que levou Michaux a encarar a droga como um instrumento para «captar» o mecanismo e a acção do pensamento, para realizar uma espécie de duplificação do que até aí era imperceptível. Talvez porque «este condenado planeta que possui tão pouco de tudo» merece uma gota de infinito.
 

 

MARIA VELHO DA COSTA OU O DUENDE À CAPELA

 

É espanhola a expressão: “tem duende”. É como eu a vejo: um duende que tivesse a paixão do xadrez.

Acabara de sair a Missa in Albis e dispus-me a entrevistá-la. Foi um encontro danado e saí para a rua eufórico, convencido de que uma rara sintonia me havia proporcionado entrevista para o Pulitzer. No dia seguinte instalou-se o pânico: a fita da cassete partira-se e rodara em vão durante toda a conversa. Telefono-lhe, conto-lhe o corrido e digo: “não há tempo para repetirmos, não sei se consigo reproduzir o que disse e como o disse, mas vou tentar repetir o élan, o ritmo, o devaneio...”. E a escritora, sem pestanejar: “avance!”. Acabámos amigos após esta primeira lição: a generosidade.

Depois colaborámos nos guiões de dois filmes: “O Mal” e “Inferno”, ambos para Alberto Seixas Santos. E vi como metia a plaina num texto, a  amplitude do seu radar, numa tergiversação impiedosa que não poupava as “cenas conquistadas”. Como explicar? Quando saiu o meu último livro de poemas felicitou-me uma amiga «é o teu melhor livro porque está cheio de compaixão!», e subiu-me a apreensão ao nariz, pois esse é um terreno minado. Fora a compaixão que provocara o texto ou aquela nascia do tecido verbal? Na literatura são coisas opostas e podem significar o garrote ou a ventilação de um livro.

Com a Maria aprendi que não há piedade possível para o texto, que todas as palavras são ainda poucas para calibrar a expressão, que criar supõe uma inquirição infinita até ao momento em que a escuta enfaixa numa “peça única” desenho e modelo, palavra e coisa. E aqui não há lugar para o apego. Ora, isto implica um despojamento assustador, que leva o escritor a pensar contra si próprio, nas dobras do que mantinha em defeso, situando-o não já diante/fora da paisagem textual mas no seu interior.

Conviver com a antropofagia do texto exige um estômago blindado: não é só a razão que gera monstros.

Segunda lição, a emoção é um efeito do texto que soube despir o escritor do seu vocabulário emocional e a inversa não é verdadeira. Quanto mais o texto mergulhar o escritor no desconhecido mais aquele vibrará aos olhos do seu futuro leitor.

Na literatura da Maria os espelhos são côncavos e convexos, ao mesmo tempo. É uma escritora considerada difícil porque este tempo aceitou de barato a degradação da realidade, que começa sempre pela degradação da linguagem. Na Maria Velho da Costa, pelo contrário, nunca houve cedências, qualquer per-versão expressiva.

De Desescrita a Português, Trabalhador, Doente Mental, de Maina Mendes, a Irene... a eficácia nunca a leva a descurar o duende da linguagem, chamado a pactuar com as leis do xadrez narrativo. Seguir-lhe os livros é caminhar por paisagens muito diversas, onde à seda se segue o tecido rugoso, à clareira o bosque, onde o prazenteiro som da cascata pode ser uma solução de raccord para uma inesperada avalancha. Nunca é igual. Nunca podemos antecipar o que vamos encontrar. Está já para além dos géneros – e há muita poesia nos seus romances, de igual modo que a ficção espreita atrás dos biombos poéticos de Rosa Fixa.

E é esta a terceira lição: uma maior liberdade expressiva imbrica o leitor na responsabilidade de ser livre.



HEMINGWAY: A ALMA SEM LEÕES

 

Durante o enterro de Ernest Hemingway, o padre, após alguma insistência da viúva, Mary Hemingway, e dos seus três filhos, acedeu por fim a ler um versículo da Eclesiastes, que reza assim: «Uma geração passa, uma geração vem, e a terra subsiste sempre». O reverendo teria com certeza preferido uma alocução em que evocasse a humildade do homem e o seu regresso ao útero de Deus, mas fiéis à memória do escritor os familiares escolheram um versículo sucinto que aludia à energia da terra como fonte de vida e à crença na existência - efémera mas reiteradamente física, material.

E estavam no "espírito" do autor de Por Quem os Sinos Dobram. Num dos contos seminais de Hemingway, inserido na recolha In Our Time, de 1924, Hemingway narra o difícil regresso de um jovem soldado, Krebs, à casa de família, depois de participar na frente de combate, e o seu gradual desajustamente ao ritmo e valores da vida pequeno-burguesa que aí se consagrava. Krebs passara por experiências de «desmesura» que, se haviam abalado as categorias emocionais e morais onde a educação o encaixara, o tinham feito conhecer novas sensações de liberdade. E de volta à sua terra natal compreendia que à sombra dos comedimentos e pequenos dramas da sua família nunca voltaria a experimentar essas intensidades. Tornou-se inevitável o seu afastamento da família e um gradual sentimento de "irrealidade".

Krebs, como escreveu Colin Wilson, em The Outsider - um estudo sobre a alienação e a criatividade da sociedade moderna - é um percursor de Mersault de Camus, sendo como este um estrangeiro que confessa secamente à sua mãe «não amo ninguém» e que a choca sobremaneira, quando - ao seu reparo de que Deus reserva a cada um uma tarefa na terra, pois não «há lugar para os ociosos no seu Reino» - replica: ««Eu não pertenço ao Seu Reino». Só a guerra, a luta, lhe haviam dado um vislumbre de sentido e agora era vítima de uma desarmonia fundamental.

Em grande parte dos contos de Hemingway, 78 narrativas agrupadas em vários volumes, abundam as personagens que se debatem com uma percepção de si mesmas que não pode satisfazer-se com o trivial e o não heróico.

A liberdade, para Hemingway, só se manifesta quando se encontra uma forma de agir que exprima essa parte da personalidade. E por isso, os contos ora rondam a memória do heroísmo - procurado em situações de guerra, de de caça, pesca ou toureio - ora são variações em torno do momento da "queda", quando o medo, a cobardia, faz os homens portarem-se como animais («a maior parte dos homens morre como animais e não como homens», lê-se em The Natural History of the Dead).

Como adianta Colin Wilson, a fase inicial da obra de Hemingway até ao conto Noutro País, da recolha intitulada Homens sem Mulheres, 1927, é uma longa meditação sobre a vulnerabilidade humana. Neste conto, um oficial superior defende encolerizado que um homem não se deve casar pois «Se (o homem) tudo perde, não deve meter-se em posição de perder a mulher. Ele nunca deve colocar-se na posição de perder. E deve descobrir coisas impossíveis de perder». Este sentimento de perda e impotência espelha-se de um modo superlativo noutro conto posterior - e um dos seus melhores - Um Lugar Limpo e Bem Iluminado. Relata-se nesta breve narração a regularidade com que um velho rico e bêbado acosta à noite numa determinada mesa de esplanada, para matar a insónia ou afogar - nesse lugar limpo e bem iluminado - os vestígios dos fantasmas com que se debate, o que provoca a irritação do empregado mais novo, recém casado e com sangue na guelra,  e a condescendência do empregado mais velho, já ciente que a vida é «nada e nada e nada e nada». Este trio ilustra a passagem de testemunho entre gerações focado no versículo do Eclesiastes, enquanto a terra persiste, imarscecível.

Depreende-se aqui uma tentação niilista, que Hemingway combate pela figura do herói, na demanda do acto de bravura que torne inolvidáveis os gestos. Neste sentido, quer na vida, como nos temas que procurou, Hemingway procede como o último dos Condottieri. Os condottieri eram chefes de guerra, mercenárias, postos ao serviço dos príncipes italianos e dos Papas da Renascença. Mas como viram Denis de Rougement ou Michel Onfray, por detrás desta espessura guerreira havia uma visão estética e um signo distintivo, a virtú, que comandava a capacidade de realizar uma acção com brio, elegância e eficácia. Como o toureiro, o condottieri, em pleno controle do seu sistema nervoso, faz coincidir o gesto com o momento oportuno, a ocasião. O que supõe doses maciças de audácia e determinação, de uma vontade que transforma a medida do perigo num veículo para o estilo.

As mesmas características que levaram Virginia Woolf, referindo-se elogiosamente a um livro de contos de Hemingway, a ressalvar que as suas qualidades sobressaíam apesar do escritor «deixar que a destreza, como a capa de um toureiro, se interponha entre ele e a realidade». A destreza como marca do domínio (emocional) diante de uma situação que parece exceder os quadros da capacidade humana é o que procuram muitas personagens fundamentais da sua obra: Macomber, que a procura recuperar depois de ter fugido cobardamente diante da arrancada de um leão, em A Hora Triunfal de Francis Macomber, ou Paco, o "torero de salon" de A Capital do Mundo (talvez o mais belo conto de Hemingway); a destreza diante da dor do pugilista Jack Brenan, em Cinquenta Mil Dólares, ou do jogador de pôker do hispânico Cayetano, em O Jogador, a Religiosa e A Rádio. A destreza que nem a morte desembainha e desprovê da memória dos homens.    

Sem comentários:

Enviar um comentário