domingo, 4 de setembro de 2011

MEMO DE DOMINGO, CADERNO DE JULHO

os sonhos de sábado: Richard Avedon

A palavra ‘inteligência’ é uma das mais elásticas do nosso vocabulário: sim, ele tem a inteligência duma trufa, etc.


Nelson Goodman: “a realidade de um mundo, tal como acontece com o realismo de uma pintura, é em grande medida uma questão de hábitos, de costumes”.


Lá me entrego a mais um forçado trabalho alimentar e às malditas revisões de livros. Tanto aqui, como no Brasil, a avaliar pelo que vejo escrito, perdeu-se o menor sentido do que seja uma pontuação. Concomitantemente, assistimos ao fim de certos tempos gramaticais. Onde se evaporou o futuro anterior? E o passado simples e o imperfeito do substantivo? Que significa esta simplificação? Os tempos gramaticais não são uma tentativa minuciosa de precisarmos todas as formas possíveis, todas as relações que entretemos com o tempo - no interior mesmo da nossa acção, do nosso pensamento? Que é uma conjugação verbal? Uma tentativa de pensar e de expressar a gama da diversidade das situações no tempo. Quando dizemos «…na aula, não ligámos nenhuma ao professor…», estamos no passado, remetidos para uma acção já acontecida, se escrevemos, «na aula, não ligamos nenhuma ao professor», estamos no presente, e a diferença é tão brutal como a que Camilo Jose Cela descortinava entre «estar fodendo» e «estar fodido». Não entender isto não é apenas grave, como nos descapacita para a conceptualização dos labirintos, desafio onde a imaginação se renova.


“Eu creio, honestamente, que é desonesto o poeta que escreve só para que o entendam os demais: escreve para entender-se a si mesmo” (José Hierro) 

O que surpreende em Vermelho e Negro, de Stendhal, e o torna actual, é ver como a literatura antecipou em muito a teoria do ego e do super-ego de Freud, como de resto em D. Quixote já isso tinha sido objecto de paródia. Como Julian Sorel, a personagem de Vermelho e Negro, nós alimentamos o nosso imaginário de modelos e da disputa entre as expectativas que a promessa de um modelo inaugura e as realidades - vivemos no fogo cruzado entre estas e as respostas-prontas que o modelo escolhido nos forneceu. Ou seja, os homens precisam da segurança das fórmulas que tatuem mapas virtuais na pele da realidade e reservam uma energia mínima para a escuta e o entrosamento com a matéria do presente.



SONETO ENCONTRADO EM QUEVEDO

Um dia vou para a rua, sento-me sobre cartão
esfarrapado e peço, a mão estendida ao salpique
de palavra encardida que já ninguém queira e use.
Porque, palavra, já não se sabe para que sirva
senão para ignaro, pobre, ou poeta ingénuo
que acredite valer a dita mais do que um volvo
ou pelo menos que console tanto como a vulva
ou que ossos de santo do tempo em que o gentios
como Francisco de Assis falavam pombo.
Um dia vou para a rua e no meio da algaravia
distraída, inaparente, chegará, como gosma
a palavra que o diabo não amassou,
a que consentiu ao peixe desramar o mar.
Enquanto não chega, dá-me para a sopa. 


Como é raro, a um adjectivo, conseguir empernar com proveito. A ostra, a lua, a noite - eis miúdas que não lhe dão abébias.


É humilde, a urtiga? A urtiga é o diadema da duna e pica com soberba e luxúria. É humilde aquele que se vangloria de ser simples? A esse, devora-o o orgulho de ser simples.
Conheci vários poetas que se arrogavam de simples para justificarem a sua tremenda falta de imaginação. A condição de ser humilde é outra coisa: é obedecer ao que cada texto pede: se concisão concisão, se uma aparência barroca, uma expressão múltipla, metafórica, carnal.
Verdadeiramente humildes são os dramaturgos que são obrigados a aceitar em cada personagem o seu carácter, sem que ninguém acuse Hamlet de ser prolixo. Aliás a prolixidade em Hamlet é o seu ethos. Estranho pois é que se peça a um poeta para ser isto ou aquilo, e isto e isto. Uma vez, numa entrevista ao espanhol ABC, se não me engano, Joaquim Manuel de Magalhães dizia que não traduzia Pere Gimferrer porque tinha metáforas a mais.
Não entendo isto. De facto, Gimferrer não é o Ungaretti, mas a pergunta é: e tinha que o ser? Gimferrer (um dos grandes poetas do século em Espanha) é o que é com as suas metáforas e não apesar delas. O mesmo vale para a intrínseca concisão do italiano – não é uma expressão por defeito, mas a que melhor defende o tipo de energia que Ungaretti desencadeava no verso.
Eu, de cada vez que evoco a humildade sinto-me a caminhar sobre brasas.


Ouço-os, cometas ébrios. Dizem de um terceiro: o man está grosso. E não sabem que podem dizer: está alegrete, ébrio, bêbado, com um pifo, com uma buba… Sendo que a cada um destes termos, embora sendo sinónimos, talvez corresponda a um grau diferente no longo itinerário daquela narsa.
Não têm vocabulário, e por isso só têm uma resposta para o estímulo.
E pensando nisto levanto-me para ir aos lavabos e de caminho tropeço numa perna de cadeira e estatelo-me ao comprido. Ouço-os comentar, atrás de mim: o man está grosso. Assenta como uma luva.
        

3 comentários:

  1. Parece que o D.João VI teve alguma culpa, que não trouxe o dicionário, que este nunca passou da letra A, que a língua se desemerdou sózinha e agora não venham cá pedir satisfações. Pois sim...mas viver aqui no Brasil é viver uma língua em estado de sítio! Ele há regras, mas onde estão elas?
    Belíssimo texto para variar, meu caríssimo cabrita.
    Estou desejando ver a capa da Ondina no expositor da Livraria Cultura!!! Devem ser uns trinta reais, mas eu pago!!
    Um abraço forte

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  2. E o soneto é maravilhoso.
    Até a mim me deu para sopa.
    Até logo

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  3. joao, o soneto em termos musicais corresponderia ao que (estou sem acentos)? ha algum tipo de composicao de 14 versos? ac

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