terça-feira, 25 de outubro de 2011

CAFÉ ORION

o orion nunca foi o majestic mas passa a ser, se as pessoas podem melhorar why not os cafes? 

Fiz uma série de contos sobre cafés, este foi o único que não foi publicado. É do final dos anos 90 e é uma simples montagem de coisas que ouvi e anotei no Café Orion, ao cimo da Calçada do Combro, em Lisboa. Espero que ainda exista.


“Nunca consegui que o meu marido fugisse para o lado da minha família, era a família dele, a família dele, a família dele. Ele é de uma aldeia próxima, mas estava sentido com a minha porque em miúdo um primo meu lhe vazou um olho com uma pedra. Um olho, imagina, há tanta gente boa que vive sem um olho...e que fossem os dois... há noites tão bonitas... sim, tens razão, só quem vê é que pode olhar as estrelas... mas que raio, uma vida não se faz só da gente andar de olho nela... Lembras-te daqueles camaleões que a gente apanhava em miúdas?”

 “Ele já me deu 90 contos com o 962, mas ontem ia-me dando uma coisinha má com o 963 quando saíram 900 contos para o 964... foi uma facada... uma vez sonhei com o 99, tu nunca sonhaste com números? Olha, para mim, depois do 9 só o... 7...”

“Sei o meu texto, só não sei a ordem em que o digo.
Que horror. Não se cala com isso, desde que viu aquele filme.
Nessa frase está a minha vida.
Ó rica, deixe de ir aos filmes.
Nunca sentiu que sabe exactamente o que quer, o momento é que é errado?
Foi pior que um crime, foi um erro...
Quê?
É um provérbio inglês.
E que tem essa trampa a ver com o que lhe estava a perguntar?
Ó rica, não sei, ocorreu-me...
Vê, fala por falar, também não sabe a ordem em que deve dizer as coisas...
Mas eu à partida não sei texto nenhum.
(após uma pausa) Bem respondido...
Ainda que para a minha mãe seja esse o problema (imita-a) ‘Ó filha, nunca sabes pôr-te no teu lugar...’
A sua mãe? É incrível! A sua mãe intuiu! Vê como é genético?
Genético é aquela coisa que é fruto de pai e mãe? Sou filha do amante.
E depois?
É o mesmo que ser filha do cauteleiro. Quem quer?
Mesmo que saia a sorte grande?
Aí sabe-se a ordem e sabe-se o texto... mas está-se no filme errado.
Tem razão.
Toda a gente dá o braço a torcer...
A mim, o direito, já mo partiram duas vezes.”

Uma árvore que dura mais do que eu? Um castanheiro durar mais que eu? Era o que faltava. Uma árvore é para um gajo mijar. Vai logo à serra. É assim a natureza, os superiores governam os destinos dos inferiores. No outro dia comprei um kit com várias bactérias, um amigo meu tem uns conhecimentos na Secreta e vendeu-me...Para mim é assim, vai de fungos, vírus, cancros, tudo... não devia haver mais árvores do que homens. Um gajo não pode correr à vontade. Corre e bate. Vocês já viram árvores num campo de futebol? E é um exemplo de natureza, a relva, de socialização, o jogo, e de cultura, o árbitro. Para mim é um must. Percebo que tem de haver árvores por causa do papel, mas se formos a ver publica-se muita merda neste país. Há uma árvore de que gosto. Quando é grande. O abrunheiro. E dá um bagaço de arromba. Agora um gajo ler que a castanha está na moda e que daqui a vinte anos é um negócio tão rendoso como o vinho do Porto, não dá – é um embuste. Vinte anos é o tempo que um castanheiro leva a produzir castanha capaz. Um homem responde por si, aos treze, aos catorze... eu por acaso aos doze já enchia um balde. Nem sei se tenho gente do circo na família mas os meus espermatozóides são trapezistas..."
“Casou-se com ela para lhe tirar o vício do nogat.
Disparate... já nem se usa.
É esquisito não é. Foi o que ele me disse. À saída do registo. Dei-lhe os parabéns e desejei-lhes muitos anos e ele saiu-se com essa...
Ele disse-te o que achava que tu querias ouvir. Achava que era uma coisa do teu tempo.
Achas. Mas então é igual ao Portas.
Isso não sei. Mas tu acreditaste. Hoje há lá pais que deixem os filhos comer nogat, por causa dos dentes...nem encontras já essa porcaria nos cafés.
Ó filha, então para que é que ele casou com ela?
Sei lá, é tua sobrinha...
Achas que estava a gozar comigo, o fedelho?
Boa peça não é. Desculpa que te diga. A boca dele parece uma ventosa. Estás a ver as rêmoras, sempre nas costas do tubarão? Pois aqui no café, à frente das nossas ventas, a boca dele fixava-se como uma rêmora no coração dela...
É verdade. Também nunca gostei. Só nunca disse para não nos acusarem de botas de elástico...
E alguma vez viste a tua sobrinha a comer nogat?
Sei lá... Devia ser uma expressão figurada.
Figurada como?
Assim como se diz que o casamento é para toda a vida.
E então o teu não foi?
Olha pois foi... se soubesse tinha-me viciado no nogat.
És doida, para quê mulher?
Quando se acabasse o vício acabava-se o martírio...
As coisas que tu dizes...
Parece que não sabes...
Sim, mas há um momento em que a gente acredita...
Pois eu olha mais valia ter acreditado no padre quando lhe disse que ele ia casar. Perguntou-me se eu sabia o que eu ia fazer e cá a ingénua respondeu que ‘estava em consciência. E vai ele, nunca me hei-de esquecer:’ a consciência é verde e às vezes bem um burro e come- a..’. E eu não acreditei.
Custa a admitir que um burro nos vai comer toda a vida ... (riem)
Olha lá está aquela, onze da manhã e já vai na terceira cerveja...       
Coitadita. Bebe cervejas atrás de cervejas à espera que a convidem para jantar e o hálito dela acaba por afastá-los...”

“Tás a ver um ficheiro sempre a paralisar-te o computas e a deixar-te muita marado? Foi assim... há milhões de bicharocos no metro todos os dias, ‘tás a ver, e no espaço de uma semana esbarrámos três vezes à porta da carruagem... sim, na estação das Laranjeiras. Ela numa de entrar, eu na de sair – e pumba, chocávamos...uma, duas... três é a conta que Deus fez...´tás a ver? A gente queria dar passagem ao outro e, trás, íamos para o mesmo lado... até parecia dois putos teleguiados, ‘tás ver? Era um atropelo, meu... ‘tás-te a ver a atropelar a mesma garina dia após dia, numa cena de milhões de hipóteses? À terceira a malta topou-se e desatámos a rir... Era o que tinha que ser. ‘Eh pá, isto parece um disco dos meus cotas que é “o destino marca a hora”, disse-lhe eu, e miúda curtiu...” Não nos despegámos mais, Brown, Sugar, Terremoto, até à manhã do dia seguinte. Levei a miúda às cenas todas, até ao B.leza. É uma cena gémea, ouvi uma vez uma coisa que nunca mais esqueci...”o corpo dela era o meu surf...”, ouve lá, era cada vaga...um mês, caralho...‘tás a ver... eh pá, foi um desatino muita acetinado mas um desatino...não dá...não dá...é que, ´tás a ver, quando a gente tava no metro e chocava a gente pensava... topas como é que é quando um gajo está gamado... pá a gente esqueceu-se que no calor da cena, no metro, sim no metro, quando ela virava à esquerda eu virava à direita, tás a ver... a gente curtia, pá, mas éramos incompatíveis... é a cena do espelho, engana-te... Tás a ver um ficheiro sempre a paralisar-te o computas?”

“O jornalista de renome: O homem habituado a engolfar os olhos no vento que oxigena as ramadas sabe que não passa do selo numa carta: é incerto o lugar de onde veio e para onde vai. Ele não, a avaliar pela facilidade com que o aparo da sua caneta desborda banalidades anos a fio sem ser açoitado por uma dúvida, um arrependimento. Desprende-se nele uma consciência em papel vegetal que não acrescentou uma veia ao mundo, um fuste onde um pássaro sazonal, de cores garridas, possa faltar ao encontro”.

“Abandonou tudo e foi viver para o interior, trabalhar numa passagem de nível, um rapaz engenheiro, eu seja ceguinha... disse ao pai que só se sentia bem quando via os comboios a calar, foi assim mesmo que ele disse, os comboios a calar, pois só quando segurava na bandeira para lhes dar passagem é que a mão não tremia...”

“Ela tenta ler um livro de óptica mas está demasiado impaciente para isso. Ele chega finalmente e ela recebe-o secamente, ainda que ele lhe estenda uma rosa amarela.
Desculpa amor, trouxe-te esta...- ela não reage – é das amarelas, das que tu gostas.
Sabes o que é pena? Que o amarelo seja a única cor que não existe nessa rosa...Toma... – passa-lhe o livro – Está aí na página 52...
Vira-lhe as costas e sai do café, deixando-o abismado, com o livro na mão. Ele olha a flor, abre o livro na página 52, que lê, na oblíqua, rapidamente e torna a olhar a rosa como se visse um alienígena. Depois pega na flor e devora-a de uma dentada...”

“Pagas-me uma cerveja?
Manda vir.
E posso sentar-me contigo?
Força...- Ela senta-se, ele repara-lhe na tatuagem no braço – Desculpa a pergunta, eu sei que as tatuagens estão na moda, mas este tipo de tatuagem, numa rapariga, nunca vi...
666. Cada humano traz em si o fim do mundo.
É um cenário possível.
Possível?
Eu por mim não reivindicava tanta pompa. Cada humano traz em si o seu fim. A florista vai continuar a negar-se ao Armando depois da morte do marido? Prova-me...
Vou cá estar para ver.
E eu não?
Tu és mais velho que eu... É uma evidência empírica com milhares de anos de comprovação...
Daí teres escolhido o 666 para tatuagem? É um bocado tétrico...
Esse número foi-me dado pelos serviços prisionais, na minha detenção na Terceira. E adoptei-o.
Que é que te aconteceu?
Fui apanhada a vender ganzas no quartel. Choca-te?
Não.
Eu estava como voluntária na marinha... sabes que agora aceitam mulheres na marinha? E arredondava o soldo com a venda de umas ganzas... Sabes como me chamavam os maçaricos?
Força...
O catorze.
Não compreendo.
Cada humano tem em si um fundo próprio. O meu lê-se nos números.
O catorze.
Essa cadeira é incómoda?
É um pouco rija, mas eu tenho um problema na coluna, por isso é que me mexo tanto...
Aí está uma coisa que uma árvore nunca sofrerá.
Fala-me da tropa...
Foram tempos agitados. No fim expulsaram-me. Era um mau exemplo. A minha primeira detenção foi porque chupei a gasolina do carro do major, para sair com um cabo. Da segunda já te falei, a terceira foi quando quis chupar a pila ao coronel para ele me transferir para o continente. Ele não se importava, mas fomos apanhados com a boca na botija... Sabes qual foi o melhor filme que já vi na vida?
Não calculo.
O Seven. É um filme onde não há redenção. O gajo que escreveu aquilo sabia que estamos cá para as pagar. É apenas uma questão de tempo.
Às vezes o bem triunfa.
Estás a brincar. Só o facto do bem existir por oposição ao mal mostra como está entalado... O mal passeia-se no teu sangue, não prestas. Isto não é nada contra ti. Falo de ti como representante da humanidade.
Mas não houve nada de bom na tua vida.
Em miúda havia um homem que me dava selos. Houve. O momento em que matei o meu pai e aliviei a minha mãe de vinte anos de pancadaria. Ela até chorou de felicidade. Mas sabes qual foi a ironia? Agarrei na espingarda com estas mãos que herdei dele, iguais como duas gotas de água. O cabrão tinha umas mãos de mulher. ou sou eu que as tenho... Não calculas o peso de ter uma vida em segunda mão.
Que idade tinhas quando isso aconteceu.
Quinze. Espetaram-me com dois anos de reformatório, apesar de ter sido considerado legítima defesa...
Falas disso com um desassombro... nunca tiveste medo?
Medo? Hum, senti-o uma vez, num tremor de terra...
Vai outra cerveja?
Queres-me engatar, é? Não queiras ser a gota de água.”

“E tinha a pila curta?
Oh pá, era um guardanapo!”

“Numa carpa de 60 anos o cérebro ainda se divide. No homem, a partir do 3º mês as células deixam de se dividir e só resta um futuro: morrer. Suponho que é por causa disto que a Cristo lhe chamavam O Peixe – ele era mais carpa que homem.”

“Ó senhor Armando, já sabe que é adoçante, não há que enganar...”

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