matta, o pintor que gostaria de ter sido |
A FÁBULA DO SANGUE RESTITUÍDO
Estou morta – grita a velha.
O pára-choques a leste de tudo.
Ela corria no meio da estrada, diz o homem ao volante.
O seu sangue escorre, murmura o asfalto negro.
Sangue? Foi-se todo, diz o homem de branco.
Ela é minha, comenta a morte gris.
Este é o meu sangue, diz o homem junto aos raides.
Sou o seu filho, diz o sangue neste homem.
Estou um gelo, pergunta-se a mulher.
Onde está o céu e o inferno, e o bem bom do fogo?
Eis O Cirurgião e A seringa e A pele e A agulha e O Sangue
Se este tipo continua com isto
malbarata o meu trabalho, diz a morte ao tempo.
Eis-me, diz o sangue à mãe.
Eis-me, diz o sangue do filho à mãe,
ao sangue da mãe que já tirita.
Boa-tarde sangue, diz o sangue, esperava-te há um bom bocado.
Para te rever teria empenhado todo o meu ouro.
Vou visitar o teu coração, diz o sangue do filho.
Então entra jovem sangue, diz o sangue da mãe.
Espera a golfada e não tenhas medo.
Depois dos trópicos e das raparigas, ainda te mantens puro?
Tenho medo, diz o sangue do filho.
Tenho medo e frio nesta velha mansão.
Agarra-te a mim, diz o sangue da mãe.
Conheces o caminho? Conheço.
Ele atravessa a aurícula esquerda, que o reconhece.
E atravessa os pulmões, que o reconhecem.
E atravessa a aurícula direita, que o reconhece.
E atravessa a cabeça, que não o reconhece.
Tempo não me falta, desabafa a morte ao tempo.
Uma segunda vez pelo coração, os pulmões,
e de novo chega à cabeça
e não se faz rogado, atravessa-a.
Sinto-me melhor, diz o sangue do filho.
Eu aqueço-te, diz o sangue da mãe.
Ela vai falar, diz o médico ao filho,
debruçai-vos, depressa, é a sua vida que vos fala!
Então a boca da mãe tremeu
e só o filho pôde ouvi-la dizer:
sonhei que o meu filho tinha nascido...
Karel Jonckheere
GÉNESIS
Antes do canto e do perfume, antes das águas e da terra,
onde estava eu? Algum desígnio na sombra
precedeu os astros? Ali, onde tudo permanece incriado
- talvez naquele que é raiz de sentimentos,
essa vontade intangível que se fará matéria,
se tudo estava nele então também eu,
também eu um entre os inúmeros seres,
parecidos mas nunca semelhantes. Com que objectivos?
Para quê todo este circo? Desfrutar de um tremendo universo
só para criar os nossos pés e unhas?
Passar do eterno ao efémero por uma sede de espelho?
Parir um ponto, começo e fim, que invalida o infinito?
Ali fui, de uma maneira perfeita, mínimo, muito menos que um vislumbre
e no entanto absolutamente necessário
para o equilíbrio da impensável máquina.
Cada formiga carrega, apoiada na sua nuca, a totalidade do universo.
O peso de uma pena abandonada a si mesma
pode amassar um mundo. Exponho-me ao sol para espalhar a minha sombra,
na memória que, no centro do presente, espera agachada como um tigre.
Ainda que não possam conversar
o piolho e o mendigo entendem-se perfeitamente.
Alejandro Jodorowsky
OS JAPONESES
Os japoneses simulam colisões de galáxias
com o tempo sem dúvida que daí se extrairá qualquer coisa a vender.
Um idoso está plantado sob o semáforo, não ousa
atravessar a rua malgrado o sinal verde. Ó Céu
dá-me a força de ver e, tendo-o visto,
de suportar as coisas do real, se é que existem.
Tempos houve em que amei, e amo ainda.
Não sei renunciar. O sinal passou a vermelho.
Penti Holappa
Os olhos do meu espírito não têm
a boca do meu espírito,
As mãos do meu espírito não têm
o corpo do meu espírito.
Esquartejado flutuo no abismo.
Azamboado de morte como uma água inquinada.
Já não quer dizer que não foi nada?
Todo um jogo de luzes e espelhos,
Todo um retábulo de fumo tenebroso?
As veias do meu espírito não têm
o sangue do meu espírito.
Juan-Eduardo Cirlot
TERRITÓRIOS DE UM CORPO
(excerto)
i
Formosa, a desordem do meu pensamento.
Que eu não sigo o exemplo dos mais antigos:
busco o mesmo que buscavam.
Por isso, nesta diáspora de ti,
sei que o silêncio que nos cobre é isto,
dois vultos que se dobram e enredam
para serem restituídos à sua solidão.
Comprovo: é Abril, o inverno termina,
que inclusive as flores são felizes.
Sou como elas, não pergunto nada;
e limito-me a estar sobre o teu corpo
como quem olha, sem temor, de frente
um eclipse
de sol.
ii
Deixa-me ser o hóspede da tua boca,
o vagar com que o calor te retine, nua.
Sou como o frio de uma noite deserta,
pronto a buscar afago nos despenhadeiros
onde faz ninho a melancolia.
Há um tal resplendor, a lua é tanta
que me deslumbras com o ardor
do teu silêncio, e submerjo em ti.
Impensável, uma eternidade tão à mão.
iii
Cada novo clima
é, em suma, um costume a que sou estrangeiro.
Expirou o dia
e, palpável, a obscuridade avança.
Deixa que me esconda junto a ti
no frondoso bosque de uns olhos
onde não deixa de chover.
Agachado entre os seus matagais,
aguardarei que a tua paixão me assinale o caminho.
Sei que o ar é mais doce onde cresce a luz.
iv
Eis-me arqueado na orla da tua claridade,
na sumptuosidade de uma batalha
onde ninguém é vencedor,
e até o odor do quarto,
onde rugem, insones, o teu apetite e a minha sede,
floresce sem sabê-lo, como um musgo nascido
da minha humidade tão tua, de uma senda
que nos conduz até esse mar sem ondas,
a terra azul onde tudo se desordena,
o centro mesmo do prazer, a espuma
que é o âmbito de toda esta explosão, e, ao fundo,
a chuva que golpeia as janelas,
a chuva sempre outra, insubornável,
com as suas lentas espinhas.
vi
Descobrir os motivos da aurora
é outra forma de pensar-te,
debruçada no corrimão do anoitecer.
Quanto a mim não sei
que mais possa dizer-te.
Só que por tua causa
quase tive o projecto de durar.
vii
Por trás do meu silêncio ouviste «não»,
quando quis dizer-te que não há ondas sem
a traça do tempo, o seu ardor,
ou a dormência de um calafrio.
Da minha antiga ambição não resta nada,
talvez apenas um torpe balbucio
queimado no rescaldo da tua boca.
Deixa-me a sós com a morte.
Para impregnar-me da tua luz
foi necessária tanta treva.
Logo, ao quebrar da alba,
com um desassossego
que tende a fundir-se na obscuridade
procuro os teus olhos nos meus
para que me confirmem que vivi? Entendes-me?
Também eu, como o sol, me porei um dia.
escreverei um poema, sem mulher nem nada,
e ao ler as palavras que dão forma ao meu rosto
talvez não advirtas que não estou. Abraça-me.
Peço a vez para apagar o sol.
Jenaro Talens
Muito bom! Que prazer!
ResponderEliminarO primeiro poema bateu-me em cheio, levou-me às cordas. Eu, que tenho a minha mãe quase nos braços.
ResponderEliminarque bom este amigo que nos mostra estes mundos!
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