quinta-feira, 20 de outubro de 2011

CONTACTOS DE TERCEIRO GRAU



O poeta Guillevic conta, num livro de entrevistas, como ter viajado pela Ásia, aos 60 e muitos, lhe deu a dimensão irrelevante da França no contexto planetário. Isto é, tinha crescido a ouvir falar da grandeza da nação de Bonaparte, e, apesar da sua lucidez, tal discurso acabara por embrenhar-se-lhe na crença, e de repente, em vários países asiáticos não só se sentira fora de toda a língua – porque ninguém falava francês – como poucos sabiam onde ficava a França no mapa.
E não eram todos ignorantes, os seus interlocutores, simplesmente haviam crescido em horizontes de todo alheios à influência da cultura e língua francesa.
E o poeta viu aí o seu país reduzido à sua medida curta e, provavelmente, justa.
Eu também me sinto assim, muitas vezes, em Moçambique. A pisar sobre uma gravidade absolutamente distinta, apesar da língua comum. E em muitos aspectos é como tem que ser, é a ordem natural das coisas.
Nas aulas, dizer por exemplo que hoje somos todos herdeiros da Revolução Francesa, é uma falácia absoluta. Esse caldo é unicamente europeu, os meus alunos gramaticalmente vivem numa outra esfera de referências e num cruzamento de mitologias e “epistemes” por vezes dilacerador.
Portanto, é ilusório julgar-se que qualquer tipo de globalização positiva (se houver tal coisa, o que é duvidoso) se possa desencadear a partir dum feixe comum de conteúdos desprovidos de lastro emocional e que não atendam às específicas diferenças locais.
A única coisa que pode ser veiculada e experimentada em termos globais são algumas manifestações da cultura de massas, como a música, ou algum cinema, mas exactamente por explorar sobretudo o mínimo denominador comum entre os consumidores, a cultura de massas nunca conseguirá veicular nada ou valores que estejam para além da imediata linha do consumo, vivida numa forma heterónima, que nunca resultará no processo da experiência de um contacto.
Estamos aparentemente todos mais próximos e, paradoxalmente, mais isolados, fechados (reféns?) nas nossas identidades domésticas e muitíssimo pouco atreitos ao diálogo e à aprendizagem com a História universal. Acantonados nas nossas escolhas.
Por exemplo: trinta e seis anos depois da independência foi decidido que em onze cidades de Moçambique se iriam erguer estátuas do antigo presidente Samora Machel.
É um orçamento bruto para cidades que não têm bibliotecas, equipamentos culturais ou desportivos, cuidados de saúde ou até remédios. E quando um terço das crianças no país ainda tem aulas a céu aberto debaixo das árvores. Mas as estátuas, num reforço ideológico, foram consideradas prioritárias.
De facto, os diversos mundos no mundo, vivem em distintos conceitos de realidade, do que é prioritário, e em dinâmicas societárias muito diferentes.
A coisa concreta que é as crianças, ei-las encaradas como entidades abstractas, sem valor afectivo que lhes valha e capacite – adiado o seu futuro; a coisa abstracta, como uma representação em pedra, ganha uma dimensão concreta e um élan político que é considerado mobilizador. Para quem?
A não ser que a China também ofereça estas estátuas. Mas porque não oferece antes carteiras para as escolas, livros, transportes? 
Agora as crianças poderão reinar à sombra das estátuas de Samora, nas horas em que gazetearem por não terem transporte ou cadernos para as escolas. Será uma espécie de contactos de terceiro grau com a História. Está certo.
Mas neste estado das coisas a velocidade de desenvolvimento de Moçambique não se sincronizará com as velocidades contemporâneas. Estará certo?



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