quarta-feira, 26 de outubro de 2011

PALINOPSIA


Hoje, para me compensar o escamar dos dias tristes e os passos em falso recebi pelo correio dois belos livros: Palinopsia, de Pedro S. Martins, e Rendimento Mínimo, de A. da Silva O. e Rui Azevedo Ribeiro. Dois elegantes objectos compostos em tipografia antiga, de caracteres móveis, com belas e sóbrias capas de Ana Ulisses, um nome que por si só é um programa.
A editora é a "50kg" que o Rui Azevedo anima. Fiquei contentíssimo como acontece quando se encontra um morango capaz que mereceu todo o estrume que consumiu.
Como agora não tenho tempo para falar dos dois, amanhã será a vez do próximo, vou-me concentrar no Palinopsia, que me impressionou deveras. Logo no poema de abertura:

A imaginação
como uma sala de cinema
de luzes acesas.

Abrem-se os olhos
diluindo
a iluminação.
Começa a sessão:

um homem que se vira,
olha para mim
e sorri.

Tem dentes enormes
num lado da boca.
Animais também.

Um cavalo com um arreio
arrasta a neve
suave
que caiu durante a noite anterior.

É esta a intermitência
de um filme
que não pagámos
para ver

Atónitos,
atravessamos a vida
a fugir
da enigmática
película que temos

a girar
na bobina da concepção.

Chapeau! Simples e eficaz como a chita. Ou simples, o tanas. Porque é dificílimo atingir esta tensão quando não se nasceu chita.
Eu não conheço o Pedro S. Martins, mas manifesto-lhe desde já a minha inveja mais viva.
É um poeta que não anda aos novelos e abre os leques justos como navalhas à frente dos olhos:

Da janela
observo o homem
que passeia
pelo Boulevard du Montparnasse 
em roupão.

Sobressaltado
fuma cachimbo como
se tivesse
uma seara

de fogo à frente
dos olhos.

Desaparece entre
o espelhar
da Gare e o algodão
do céu da minha boca.
Sempre fui eu
 a única figura
que reconheço

nestas alucinações
líricas

E apesar do poeta estar ciente dos riscos do solipsismo, sacode ainda a morte para se abrir à vida:

Abri a escrita
ao vento

para me desfazer
dos versos

tétricos.

Há poetas que se depuram em nome de uma simplicidade, de uma honestidade, que se torna, paradoxalmente, quanto mais encarnada mais esterilizadora, e me fazem lembrar uma fala de Sacha, em Ivanov, de Tchekhov: «Não é capaz de pedir um copo de água ou de acender um cigarro sem fazer uma demonstração da sua extraordinária honestidade.» Este não é o caso: Pedro S. Martins condensa por fulgurações que dilatam o verso para lá da imaginação do leitor. Veja-se só esta abertura:

Um grito
anuncia
a envolvência

(…)

Surpresa e nocaute. Palinopsia é um distúrbio visual que faz com que as imagens persistam mesmo depois do seu estímulo ter desaparecido. ‘E de facto um livro que sai da retina para o cérebro e não deixa de retinir.



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