terça-feira, 25 de outubro de 2011

DIÁRIOS DE GUERRA DE UM ORNITÓLOGO 1/1982



Ainda hoje não sei porque não desisti ao primeiro artigo, para o JL, em 82, depois de uma noite inteira a mastigar uma torta de cimento que nem ao fim de quatro, cinco horas de dactilografia, havia chegado ao ponto cremoso, apesar de já ter amarrotado quase meia resma de papel. Já a luz da alba repontava quando finalmente cheguei a uma versão tragável do artigo, com as palavras pescadas uma a uma. Duas horas depois acabava e ia directamente para o jornal.
Tornou-se hábito passar as noites nessa tortura, proibido o sono, com o rolo da máquina a vomitar folhas amarelas e azuis-bebé, rascunho a rascunho. Pelo menos doze anos, antes de comprar um «vídeowriter» com impressor acoplado, que permitia emendar o texto no ecrã.
Vendo à distância parece-me impensável tanto esforço físico ligado à escrita de uma simples frase, do fio de raciocínio mais inócuo. De vez em quando, da hulha, relampejava algo, que levava o jornal a não desistir de mim e alguns leitores a seguir-me, mas nunca tive grande consciência do efeito que exerceria eventualmente a minha escrita.
Fiquei extraordinariamente surpreendido quando o Eduardo Prado Coelho me faz um rasgado elogio numa crónica e o Augusto Saraiva (a Boca Negra), como era conhecido no auge da sua notoriedade, desatou a falar comigo no Frágil, então a discoteca mais famosa de Lisboa. Uma vez apanhei-o com um pifo a lamentar-se de que o filme do Foreman sobre o Mozart lhe “fora roubado” (era o projecto da vida dele, um filme sobre o Mozart) e eu que era um rapazito tão escatológico como o Mozart aproveitei para deplorar que o Rilke tivesse roubado a minha obra. Foi o mais próximo que estivemos, uma garrafa de Black Lebel, e depois começámos a entreolhar-nos desconfiados – eu não sabia alemão, ele fingia que sabia alemão – e eu deixei de frequentar o Frágil (fui sempre mais de tascas rascas, como o Manuel de Freitas, só que a mim o dinheirinho saía-me do pêlo).
Os meus artigos - sobre cinema e literatura - continuavam a misturar uma grande liberdade, eu sempre me estive nas tintas para as regras, com anfractuosidades escusadas e alguma plumagem, e intuições armadas em leituras transversais, dado que nunca me entreguei à ara de uma especialidade e preferia os labirintos ao museu de cera das taxinomias.
Para mim cada artigo era uma descoberta pessoal e não uma exibição de conhecimentos ou um mero despejar da informação. Era um funâmbulo desensimesmado, o que quer que isso fosse. Por instinto, apenas não conseguia imitar os outros sem acrescentar o meu ponto, o meu factor de desequilíbrio. Havia algo de original na minha atitude, ou antes, de espontâneo, e havia quem adorasse e quem detestasse, nunca concitei unanimidades. O António Mega Ferreira, que era meu chefe de redacção, não tinha dúvida e queria puxar-me todo para a literatura mas antes que ele tivesse tido essa influência decisiva saiu do JL, e eu não o acompanhei para a revista Ler, sobretudo por causa de uma timidez e insegurança que sempre me lixaram a vida.
Estávamos no começo dos anos 80 e tinha alguns colegas por quem guardo carinho – a Inês Pedrosa, o Jorge Colombo, o Pedro Borges, mais tarde o Carlos Vaz Marques – apesar da vida nos ter afastado, parece que por erros meus. E havia muito álcool, muitas noites perdidas, boémia, dissipação em estanho e prata, e o Bichano, no Bairro Alto, onde se comia um bacalhau à Braz cujas batatas à palha se enterravam num cone de bacalhau como se fosse queijo fundido e que nunca mais vi feito em lado nenhum.
Eu andava apaixonado pela Dominique Sanda e enchia a boca com Cioran, que me fora impingido pelo Luís Serpa, um companheiro meu da Escola de Cinema - que hoje é marinheiro nos mares do sul -, e considerava o meu trabalho de jornalismo meramente um «hobby» que me permitiria o tempo para escrever poesia e talvez até deslocar-me a Veneza ou a Barcelona, as minhas duas cidades míticas que nunca cheguei a conhecer.
Os meus amigos e modelos continuavam a ser os poetas, que era aqueles que mais me liam e criticavam. E eu insistia em querer fundir o jornalismo e a poesia nos artigos, em discursos críptico-líricos que causava alguma perplexidade aos cineastas que me achavam pouco técnico e demasiado criativo.
Por outro lado, lembro-me de uma entrevista do Baptista Bastos ao João Botelho, onde me elogiavam as qualidades de metralhadora em 360 graus. Ímpeto intransigente que hoje nem sempre me orgulha. Lembro-me de um romance de um jornalista do Porto sobre a guerra colonial que numa página reduzi a estilhaços e cujo autor esteve uma semana de baixa, deprimido, ou de críticas de livros de poesia em que arrogantemente corrigia os versos do autor, propondo versões “depuradas”. Era um cabotinismo sem um grama de dúvida ou piedade e a minha frase de combate resumia-se a uma linha cortante: «nenhum medíocre é inocente!» (o que não é falso de todo).
Contudo, continuava a considerar o meu trabalho criativo como prioritário, e, ainda que não estivesse preparado para nada de muito especial, pois graças a deus amadureci tarde, nessa altura faria com certeza minha a advertência de Jim Harrison: «Enquanto poeta, sou pássaro e não ornitólogo».
A minha vacilação, ou antes, a minha sobranceria em relação ao jornalismo, era tolerada nas redacções porque eu era rápido e eficaz e oferecia sempre uma perspectiva algo particular, mas mantinha a minha hipótese de contratação para os quadros das empresas arredada da cogitação de qualquer director ou administrativo, e a mim agradava-me essa liberdade porque ganhava mais como colaborador permanente e gozava de mais tempo para mim.
O único que me levava a sério era o Fernando Assis Pacheco, que me convidara para O Jornal e me sondou para a hipótese de me passar a cota dele na cooperativa, porque ele queria retirar-se cedo para escrever novelas e, num gesto romântico, queria entregar a sua parte a um novo em que ele acreditasse. Eu admirava imenso o Pacheco, mas fiquei tão assustado com a hipótese que não tive pejo em dizer que sim quando me convidaram para colaborar no Expresso, a ganhar o triplo do que alguma vez me havia sido pago no JL e n’ O Jornal. Ele ficou lixado, olhou-me de lado e perguntou áspero, então como te sentes com o rei na barriga?
O rei na barriga nunca chegou a dançar a tarantela. Devo ter sido a única criatura da humanidade que recusou por duas vezes a entrada no quadro no Expresso e que à primeira oportunidade em que o convite foi formulado aproveitou para esclarecer, não só não vou entrar como vou trabalhar para o Diário de Lisboa, a ganhar menos 50 contos. Mas isso é o que contarei depois.  

1 comentário:

  1. Tanta autocrítica, camarada ! O mundo não vai mostrar comiseração, pois não ?

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