terça-feira, 18 de outubro de 2011

QUANTO PESA O OSSO NO NINHO

Tenho um amigo que anda a passar as passas do Algarve, com a mãe a finar-se. Na semana em que de longe (já estava em Maputo e, lamentavelmente, sem dinheiro para sair de hoje para amanhã) pressenti a agonia da minha escrevi isto. Vai para ele. Uma poesia, enchamos a boca, cheia de pathos. Parece que já não se usa. Eu estou-me nas tintas, ele, sei que também. 


QUANTO PESA O OSSO NO NINHO?

Uma vez, levou o Aurélio para o quarto
e, na manhã seguinte, ao devolver-mo,
comentou: «Este dicionário tem de tudo:
erva-dos-gatos, erva-de-louco, erva-de-jabuti,
erva-capitão, erva-de-santa-luzia,
 erva-do-aflito, erva-dos-cantores,
erva-mijona, erva-de-piolho,
erva-aranha, erva-da-muda,
erva-de-parida...só não tem erva-
-daninha....Queres um chá?». Nunca

mais me poderei evadir, encolher
os ombros, suster na epiderme o ralho
resinoso, desligar-lhe o telefone.
Há-de cacarejar sem engasgo num postigo
inescusável do meu cérebro, 
nó que supura a madeira mais macia.

A pessoa que nunca cresceu e fez do medo
a sua mesa alemã, que me deitou à terra
como estrume e legou este enorme sentimento
de impreparação, fenda geradora de fenda,
água a que um poço abriu um olho
e que agora sonha com a vastidão
dos incêndios, com guindastes
onde um céu se espreguice; aquela
que nunca poliu as unhas e devorava
almôndegas como se fosse terra moída
de Veneza nunca mais deflagrará o seu silêncio
no fulcro de segredos quase absurdos.

Nunca a levei a provar filetes de moreia,
ou lhe falei de Itália, a minha tisana.
Não perdoa aos mediterrâneos o vinho.
Adoraria ter vivido na densa folhagem
dos carvalhos – para não ser vista. E
como esquecer não é para o seu feitio
encobre no musgo a pedra que lhe fere
a vista. Que fazer com a metade
humana da morte, a que destila
um apego e atenua os eclipses
da lua? Filme de reprise.

O corpo é um buraco onde cai
o corpo, escreveu o poeta. O meu buraco
engordou e nunca
me perdoou o desconsolo.
Para ela, uma vez visto está visto.
Fixado o ‘oiro’ nos caracóis do rapazote
que se tornaria meu pai, o barro
da memória cozeu inteiro
nesse fotograma. A ironia
do marido ter ficado grisalho
aos vinte e picos é uma gorjeta
que erradicou do mealheiro
da memória. Outro desconsolo:
eu não me ter sabido resguardar
 de aguaceiros no leito
da debra winger, que entreviu -
entre duas palavras cruzadas - a publicitar
um perfume (‘ó pá, é muita bonita!’),
o que me furtaria ao desprovimento da arte,
franzidos largos na manga do verso.

Filme de reprise: ‘sabes por que
é que as boas acções não são
recompensadas? porque o mundo
é um inferno’, e prosseguiu: ‘vê lá
se já está a dar a telenovela’.
Moldou a cicatriz
ao sofá e chilreou sonho alto.

Não envelheceu – o ar oxidou
à sua volta, abreviado pelo mistério
das emoções. Por isso a matemática
foi o sonho fruste. Ah, o conforto
de uma sesta à sombra de número primo;
flanar por gentilíssimas figuras geométricas,
neutralizada a força bruta das emoções
- que julga insulares!

(Mãe, quem não relembra, inconsolado,
o baloiço do Jardim da Estrela?
Tomemos o meu caso:
a maior parte do tempo,
a poesia é escuta, não há nela conforto;
um vento agita outro e as ameixas
sonham com a evasão sem perceberem
de que nem todo o começo é novo.
Sim, mãe, o cavalo de Tróia está vazio
e apodrecido há séculos demais,
se andarmos à sua volta descrevemos
um círculo – é tudo. Está a ver a ironia?)

No espaço oco entre mim e o mundo
(“cada pessoa é um mundo!”, repetia ela)
abre-se e fecha-se, desbotada cauda
do pavão, o palco da minha consciência.
Trespassam-na rajadas de ventania.
Se não nos familiarizarmos com
os seus milhentos murmúrios – recorta-se
como um selo –,  julgamos o palco
devoluto, insensíveis
aos castelos que se erguem no ar.

Era o mesmo com ela: a liberdade
que nos dava parecia-nos desagasalho,
vala comum. Fisgados de miúdos
pela ideia do cheio
viciamo-nos em sentidos prévios:
o telhado de uma casa, uma balaustrada
para saborear distraidamente uma tosta,
o rugido com que a mãe gorila
defende as crias. Dificilmente concedemos:
a vida é um processo
e a argúcia das cores mede-se
pela indeterminação que as transforma,
e não na regra fixa.

O seu debicar na canção ligeira
sangrou na minha descoberta de Coltrane.
A sua leitura indiscriminada desabou
em mim as falésias de Nabokov.
Muito antes dos padres do deserto
pasmava-me a inexplicável ausência
de pedras na sua boca.
E hoje, desataviado
dos seus lugares-comuns,
ouço-me a soletrar, Mãe, gosto muito...
e adivinho-a a abreviar-me a pieguice
com a sua proverbial resposta
pronta: “É natural, és meu filho...

Domingo de manhã, a água luze
nas espáduas e conflui no ralo.
Depois do duche, entrega-se
ao seu vício: imagens videográficas
de crocodilos a rilharem os dentes no papiro,
à impassível sombra das pirâmides,
enquanto executa as suas lunações,
mágicas equações de terceiro grau
com que desautoriza a turbilhonante
multiplicação dos mundos.
A meio da manhã, aperta um desassossego,
levanta-se e vai à cozinha inebriar-se
numa sande de linguiça,
a que chama “as bichas”.

Uma solitária empedernida.
Nunca ponderou noutra cor para o azul,
ou descortinou erotismo no desenho das árvores.
Aos distúrbios do mundo
associa a desmesura da colega que vive
com doze gatos.
E além de marido e filhos
nunca tuteou ninguém, desabraçada
poro a poro por uma solidão inconsútil.

‘A falar é que a gente se entende!’,
outro chavão. Mas desentenda-se:
esta indistinta comunhão é um apeadeiro
que o ímpeto da linguagem põe diariamente
fora de circuito, ao engrenar
paisagens e enganos múltiplos.
A linguagem é nela um escorrega
para o fracasso. Fia-se mais
na vidência da águia
que topa lebre a quilómetro e meio.                         

Há um ano atrás, fomos ver uma comédia
de Georges Feydeau e o vaudeville
fê-la cochilar. Os seus roncos redobraram
as risadas na plateia. Foi
um dos maiores sucessos
da sua vida. A caminho de casa, brinquei
‘Hoje esmerou-se, no seu papel de Bela
Adormecida a meio da Purga do Bebé!’.
Rimos tão a gosto que gritou, ’ai!’,
e descuidou-se. A minha mãe,
64 anos feitos em Fevereiro.

Uma vida vacinada pela noite inicial,
isenta de asa-delta. O Mal
colheu-lhe o pai aos cinco anos
e prensou-lhe a alegria
em manhãs de bronze.
Posta à parte à primeira enxurrada,
antes de conseguir deitar raízes
e de entronizar que só nos libertamos
matando os mortos, outra vez,
os mortos. E que depois disso
não é crime voltar a amar,
que o lençol soerga o vento.

O bloqueio é que lhe deu grandeza.
Escudada na roseira do medo, não
abandonou o posto
nos momentos de perigo,
à vista de um renovo de pobreza criptogâmica,
ao alarme de uma açulada ressurreição dos mortos.
Apesar do pavor a semear decisões
– o que prova que a geometria,
a ser mansuetude, não é plena –
era uma retaguarda fiável.
Parecia inerte como uma cadeira
e alçava-se de súbito das coisas miúdas,
tresnoitada magnólia
que não reclama espanto ou retribuição.
Exigir-lhe agora que soubesse
da face quádrupla do homem?

Escrevo-lhe de um quinhão longínquo,
cabeça no ar como ela,
tão filho nisso
que não distingo a agulha do palheiro,
a luz da sua misteriosa claridade.
Ainda que levemente mais ciente
do que devora
e se esconde na trepadeira do visível,
e de que as paisagens,
arrancadas ao chão,
desacatam o movimento do sangue.

Escrevo-lhe de uma morada que não conhecerá.
De uma cidade quadriculada, ao seu gosto.
Polvilhada de acácias vulcânicas
e descomedidas vagens de jacarandá
que parecem corações na bruma,
e na qual só a fome é imperecedoura.
Escrevo-lhe de uma cidade betumada pela dor
mas talhada por relâmpagos que geminam
a candura e o pútrido; escrevo-lhe
empolgado porque no núcleo de espinhos
da micaia há quem ame com a energia
com que ela verga a morte: “ Ninguém
cá fica para fazer torrão, nem mesmo ela!”

E graças ao desplante do seu desmentido perpétuo
nunca me calhará o horror: “Por trás de mim
há uma coisa  que apavora.
                   - Ouves o grito dos mortos?”.
Tenaz, caiou sempre a catástrofe,
a própria sombra, e mentiras há que erguem castiçais,
algo que ao arrepio do medo desperta as cores
da seda, infiltrando nas trevas
um devotamento leonino.

Não estavam más estas moelas, mãe.
Vou na quarta caneca, o que só
acompanha tudo: estou mais persistente.
Nunca trocámos pinga de melancolia,
ou de indulgência, brutos e francos
e divergentes. Sempre soube
que, de têmpora a têmpora, teria  preferido
um cura a um alcoólico, um solicitador
a um poeta, a pedra à água, o norte ao sul,
ter-me-ia preferido um prodígio
de comedimento. Preferia sempre, ainda que
de forma tão discreta que era fácil
não entender do que gostava
– um algeroz sem chuva, é o quê?

É incómodo intuir que até na morte desa-     
certamos o leve e o novo. Uma geração
de medos separa mãe e filho: dois artistas
caducos que, falhado o crivo,
perdem o instinto. Deixe-me respirar, mãe,
encurvar a matéria como o casulo,
no seu hausto obscuro. Deixe-me,
à ríspida maneira do pai,
dizer: o que não se magnifica apodrece,
ata a carne ao que estiola. Embora
não me surpreendesse que, nesse seu hábito
de passar religiosamente ao lado,
o seu corpo permanecesse teimosamente
intocável – carburante para o amor
e o azougue. Olhe,
como o inteiriço corpo de Pessoa.

Não certamente: é de lei.
Daqui a um lustro,
dois, estaremos sentados numa esplanada
em Jerusalém (não a exausta,
do Médio Oriente, mas a fresca
como um choupo, lá em cima),
figurantes daquelas fitas bíblicas
por que se péla, ou no mural
de um jardim adormecido, a trocar
impressões sobre a floração
das miragens.

Maria Casères, actriz sumptuosa e amante
de Camus, um dos poucos
que consegui impingir-lhe, disse na televisão:
“Se hoje mesmo aparecesse a fonte
da eterna juventude não aceitaria um gole.
Aqueles que amei já franquearam
a Porta Inóspita e a dignidade
do relâmpago que se comove com o húmus,
deve ser a minha!”. O mesmo
digo eu agora, mãe, e não
se trata da trivial promessa
da criança que roga à febre,
mas de aquilatar o peso do osso
no ninho, de uma imperiosa necessidade
de não malbaratar o vinco de luz
que nos cingiu.

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