sábado, 29 de outubro de 2011

AFORISMOS DE VAL'ERY


Paul Valéry: aforismos sobre literatura do livro Rhumbs, que foi coligido com tantos outros em Tel Quel, Folio/Gallimard, e algumas notas à margem. A tradução é minha.


Um poeta é o mais utilitário dos seres. Preguiça, desespero, deslizes de linguagem, olhares singulares – tudo o que perde, rejeita, ignora, elimina, ou esquece o homem mais prático, é colhido pelo poeta, que pela sua arte dá-lhe algum valor.


É poeta aquele a quem a dificuldade inerente à sua arte dá ideias – e não o é aquele ao qual ela os retira.

Parece-me fulcral esta noção de que, em muitos poetas (não em todos, evidentemente) se parte do vislumbre do fracasso e que só a obstinação força a abertura e impõe uma virtualidade que parecia impensável.  
É o que dá uma dimensão trágica a alguns poetas – aprendem a viver em absoluta insegurança. E aí a expressão brota com um sentimento de urgência.


Muito poeta é como aquele que procurava com infortúnio e furor por toda a terra, as rochas onde, por acaso, se figura uma semelhança humana. 

Erro que já se encontra em Platão que rejeitou que a sarça pudesse falar ou, pelo menos, dizer algo que interessasse ao homem. Valéry, em Choses Tues,  distingue o «homem do mundo» do «homem do universo». E no mesmo livro diz o que me parece essencial: «É preciso ser leve como o pássaro e não como a pena?» Soa-me que os que só buscam a semelhança procuram ser leves como a pena. 


A Pítia não saberia ditar um poema.
Tão-somente um verso – quer dizer, uma unidade – e depois um outro.
Este deusa do Continuum é incapaz de continuar.
É o Descontinuum que tapa os buracos.

A Pítia era a sacerdotisa de Apolo que pronunciava os oráculos, em Delfos. É surpreendente esta nota, porque a priori nunca associamos a profecia à gaguez.


Os deuses resguardam-nos do delírio profético!

O imperador Augusto dizia temer os homens que não têm deuses porque não mostram consciência dos seus limites. Mas gosto ainda mais desta frase por uma questão de que os gregos já tinham consciência e que nos devia proteger de alguns delírios proféticos: muitas vezes as musas mentem. 


Inspiração.
Supondo que a inspiração seja o que se crê, e que é absurdo, e que implica que todo um poema possa ser ditado ao seu autor por qualquer deidade – resultaria daqui, exactamente, que um inspirado poderia escrever tão bem numa outra língua como na sua, a qual ele poderia de antemão ignorar.
(Assim falavam os possessos de outrora, por mais ignaros que fossem, hebreu ou grego nas suas crises. Eis o que a opinião confusa empresta ao poeta…)
O inspirado podia ignorar tudo da sua época, o estado dos gostos de sua época, e as obras dos seus predecessores e émulos - a menos que fizesse da inspiração uma potência tão desligada, tão articulada, tão sagaz, tão informada e capaz de cálculo, que não se saberia mais porque não lhe chamar simplesmente Inteligência e conhecimento.

Evidentemente, quem escreve com disciplina e devoção conhece momentos em que o texto se conduz a si mesmo, numa espécie de escorreita inteligência não circunscrita. É um estado de impregnação que faz com que o texto se reproduza organicamente e que o estrutura, sem grande intervenção do nosso raciocínio e vontade. O texto nasce do seu tecido verbal. E aceito que muitas vezes (não sempre) as melhores soluções surgem dessa fluidez “inconsciente”. Lembro-me que quando estava bloqueado num artigo, ou num guião, ir dormir tranquilamente, pois quando me sentava à mesa às 6h da manhã a solução engatilhava-se por si mesmo dado que o meu inconsciente estivera a trabalhar nas horas de sono. Nunca falhou. Evidentemente que é preciso confiarmos cegamente no processo, porque o tempo não pára e as encomendas têm um tempo de entrega. Mas se meti atrás a palavra inconsciente entre aspas é porque hoje sei que isso afinal não tem nada a ver com a irracionalidade, com dantes julgava e tanta gente julga, mas antes com uma “sobreconsciência”que está para além do mental. Explicar isto agora exigiria várias páginas.


Entro num escritório, onde qualquer assunto me chama. É preciso escrever, e dão-me uma caneta, tinta, papel que se afeiçoa, à maravilha. Escrevo com facilidade não sei bem o quê de insignificante. A escrita sai-me a gosto. E deixa-me uma vontade de escrever. Saio. Perambulo. Carrego uma excitação de escrever que fareja qualquer coisa a escrever. Chegam-me palavras, um ritmo, versos, e isto precipitará um poema cujo motivo, a música, o prazer, e o todo convergiram do incidente material de que eles não guardarão qualquer traço. Que crítico suporia esta origem para o poema? A crítica é possível? Entendo esta crítica como o que nos serviria a nós-mesmos, e nos faria conceber um pouco como fazemos o que fazemos…

Um homem muito vivo, muito inteligente, negligencia o seu estilo do mesmo modo que se permite loucuras e zomba do dom que possui.

Um homem muito inteligente e vivo é também voluntariamente um pateta em aberto que joga tanto com as suas personagens que acaba por se confundir com elas, o que pode ser ruinoso para a sua vida. Há que ter um bocadinho de idiotia.


Quem diz: Obra, diz: Sacrifícios.
A grande questão é de decidir o que se sacrificará: é preciso saber quem, quem, será comido.

Eu não tenho dúvidas: é a família quem paga, quem é comida. E também não tenho dúvidas de que não mereciam tanto egoísmo.


O que tu fazes de melhor, eis a mais fatal armadilha.


O que num homem é inimitável para os outros é precisamente o que ele não consegue ele mesmo imitar a si mesmo. O que eu tenho de inimitável é-o igualmente para mim.


Construir-se um público.
Tornar-se um «grande homem» não é mais que levar as pessoas a amar tudo o que vem de vós; a desejá-lo. Habituai-las ao seu eu como a um alimento, e eles ir-vos-ão lamber a mão.
Mas há então duas espécies de «grandes homens»: uns dão às pessoas o que lhes agrada; os outros ensinam-lhes a comer o que eles não amam.

Prefiro este segundo tipo – inequivocamente


O que caracteriza uma literatura da decadência é a perfeição – são as perfeições. E não pode ser de outro modo. É a habilidade crescente, somada a mais espírito, mais sensualidade, mais combinatórias, a uma maior dissimulação das penosas necessidades, a mais inteligência e profundidade; em suma, a um maior conhecimento do homem, das expectativas e reacções do leitor, das fontes e dos efeitos de linguagem, a um maior domínio de si mesmo – o autor.
Virgílio é o tipo.


A morte como meio literário representa uma facilidade. O emprego deste motivo é uma marca de uma ausência de profundidade. Mas a maior parte coloca o infinito dentro do nada.

Hesito. Estive 15 anos a rasgar tudo o que escrevia porque tudo o que saía me parecia tocado pela morte. Mas suspeito que só voltei a publicar quando achei o meu modo de falar da morte – o que é diferente de ter abandonado “tal facilidade”. Agora sulco a morte sem a rechaçar como antes, antecipo-a ou carnavalizo-a, sem que deixe de manifestar com ganas o ímpeto, o tesão de viver. Penso que o equilíbrio é o mais difícil e que aqui estará “o segredo” que se fala em baixo.


Há um «segredo» de fazer versos, como o há um no tocar o violino. Aquele que não possui o segredo faz versos, ou toca o violino, pelo menos ele crê nisso, e se engana e a outros com ele, posto que confunde o que ele julga fazer com o que ele faz na realidade – e é precisamente possuir o segredo o que afasta esta confusão.           

O ideal é ter a coragem de só publicar um quarto do que se escreve, pois mesmo quem tem «o segredo» (a haver) sabe que este é como as bolas do malabarista – escapam-se-nos fácil, consecutivamente. Perguntava o Godard sobre os cineastas que estão anos sem fazer um filme: «será possível estar anos em branco e considerar-se um cineasta, não se perde a mão? Perde-se, por isso quem tem o azar de começar a escrever está condenado a fazê-lo sem descanso, com incertos resultados, sai-lhe do pêlo. Perguntem ao Lobo Antunes sobre isto. É preciso tempo, ganhar tempo é o verdadeiro combate.


O tipo orador serve-se de imagens insustentáveis. Magníficas em movimento, ridículas no repouso.

Já o poeta não deve temer apoiar-se no «falado», e muitas vezes a poesia renova-se pela incursão no não-poético. Como em tudo, não é uma regra absoluta mas sazonalmente é necessária.  


Acho indigno querer que os outros sejam da nossa opinião.
O proselitismo espanta-me.

Também a mim me espanta. Nunca esquecerei o elogio que Jung fez do tradutor do I-Ching para as línguas ocidentais, um jesuíta que esteve 30 anos na China e que se gabava de não ter feito um cristão.

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