domingo, 16 de outubro de 2011

O AGRIMENSOR DE NUVENS/ CADERNO DE SETEMBRO




Como nos frutos, não é possível abrir o pensamento sem o rasgar.

A cobra, esfolada, ainda se mexia. Guimarães Rosa.

Que ódio às macieiras velhas, as novas tolero.

Tropeçou na longa ausência da palavra framboesa.

Começou a deixar os dias estendidos na corda da infância

Não, meu caro Bernard Noel, a página não é um espaço mental, mas um hangar, um daqueles hangares enormes e com direito a nuvens esparsas e micro-clima, o que te pode constipar, ó poeta. Foi mais sagaz o Pessoa quando dizia que com ele estava o universo constipado.

O lagarto nascia da cabeça de uma criança morta com meningite.

O rubicão: a tua sombra escalda a bainha dos meus olhos.

Eu amava-a, mas os seus acessos de tosse matavam em mim o melómano.

A mais perturbadora das experiências e simultaneamente a única em que à partida não acreditamos é a do efeito do tempo em nós.

A poesia, sob ocupação.

Bebe desalmadamente, como se tivessem acabado de encaixar nele os gonzos do mundo. Olha de viés para a minha mesa, livros, um caderno aberto, o meu tique de coçar com o lápis a cabeça atrás da orelha, e de supetão, com uma lágrima no olho pergunta-me: onde se põe a cesura no vazio?

Só na língua materna se pode dizer a verdade, lembrava Celan. O problema é que levamos décadas a descurar a nossa pertença a uma língua e às vezes só despertamos para ela quando ela já nos virou as costas.

O título de um capítulo de Michael Certeau sobre a escrita, O Lugar do Morto e o Lugar do Leitor, faz-me jorrar a hipótese de que nas sociedades tradicionais o único leitor seja o morto, o único intérprete seja o morto, e que esse é o escândalo da escrita: introduz um leitor exterior ao antepassado e ao invisível.


«Traçam-se sempre duas margens: uma margem obediente, conforme, plagiária (trata-se de copiar a língua no seu estado canónico, tal como foi fixada pela escola, pelo uso correcto, pela literatura, pela cultura) e uma outra margem, móvel, vazia (apta a tomar quaisquer contornos) que é sempre o local do seu efeito: o ponto em que se entrevê a morte da linguagem» (Barthes)
Gosto da expressão plagiária atribuída ao chão e pragmático uso da língua, o que nos coloca face a uma língua sem materialidade, clivada, pênsil sobre si mesma para servir um trânsito que a fantasmeia.
O que se apodera do sujeito quando para ele a linguagem nunca foi objecto de fruição, nomeando tudo com letras mudas, em deflação? De que está possesso quando nunca pode reaparecer como margem do que foi dito? Que é esse algo secreto, anónimo, que o condiciona ao sentido literal?


Há gente, acontece-me muito com os tecnocratas, cujo discurso me parece um muro impenetrável. Não tem a ver com o significado das palavras mas com uma ausência de respiradores no discurso. Falam como o pedreiro que reboca uma parede, alisando as rugosidades, anulando as bolhas, esfoladelas e rasgões. Ao fim de três minutos deixo de ouvir, sou incapaz de seguir o fio de uma lógica tão de arame, sem meandros, desvios, acelerações e suspensões – sem textura verbal. São frases atiradas à parede mecanicamente, que se sucedem como se fossem sempre a mesma passagem.


Nunca pertenci à legião dos obedientes da língua até por uma razão de peso: nunca a dominei e sempre lhe entrevi a morte nesta minha incapacidade para a expandir e magnificar. A minha deficiência, a minha inconsistência no seu uso, culpabiliza-me, é em mim terreno de conflito. Trabalhá-la, procurar o seu fluxo, é a minha saída – a única cicatriz viável.
Não sei como explicar isto a quem não o sente, a quem não compreende que o prazer do texto, como dizia Barthes, é uma agramaticidade.


O artista é o único bombeiro que não mente e combate o fogo com o fogo.






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