Robert Juarroz, num poema que já traduzi aqui, diz que o mundo é sustentado por uma rede de olhares, aproximando-se do que Merleau-Ponty, num conceito saboroso, chamava a «carne do mundo»,
isto é, a reciprocidade do ver e de ser visto.
Ideia que o filósofo francês foi buscar aos gregos, para quem só era admissível a ideia de ser nessa equação da reciprocidade.
Porém a reciprocidade é uma ideia que carece de ser cultivada, nestes tempos sombrios.
Era esse tipo de vínculos que alimentava as tertúlias, e vários movimentos literários ou artísticos ao longo dos séculos, em todas as épocas e lugares. Ainda agora estive a ler uma entrevista de John Ashbery em que ele fala dos encontros entre ele Frank O’Hara e Kenneth Koch e como eles se apoiavam mutuamente e liam e comentavam as coisas uns dos outros, o que acabou por definir uma prática e estética comuns a quem os críticos chamariam depois a Escola de Nova Iorque.
Serve isto só para lembrar que alguma coisa germina na literatura sempre que um grupo de amigos com interesses comuns se entreolha e discute e se influencia, num entusiasmo mútuo e num desinteresse que só à arte toma por verdadeira. Foi sempre assim.
Aqui, neste momento, não. Ao contrário do que acontecia nos anos 60, 70 e 80, hoje, os melhores elementos, João Paulo Borges Coelho, Mia Couto, Luís Carlos Patraquim, Ungulani Ba Ka Khosa, Aldino Muianga, Suleiman Cassamo, Paulina Chiziane, Eduardo White, Nelson Saute… estão absolutamente isolados uns dos outros, só se encontram bianualmente por casualidade, num dentista ou num avião, sem que ninguém, na generalidade, leia os outros, ou tal comente, quanto mais exporem-se à conversa franca e aberta sobre o ofício. Cada um deles tem a sua rede virtual de contactos mas não coincidem mapa e território.
Há uns anos, recentes, julguei que estava a emergir uma nova geração em que voltava a acontecer o debate, a partilha, a reciprocidade. Está tudo desfeito, dispersaram-se as almas, e ao silêncio só se sobrepõe os barulhos nocturnos dos carros do lixo ou os ganidos dos que nos fô by fô aceleram com as marrabentas no máximo dos decibéis.
Esta é uma cidade que conspira contra si mesmo, uma urbe que perdeu os elos, o élan da reciprocidade, o diálogo entre os diferentes. A todos os níveis. Os contactos são de uso e oportunidade, e ficam-se por aí.
Por isso costumo dizer que estou «exilado», porque não há ninguém com quem tecer a «carne do mundo» e falar das descobertas e do espanto, das formas, intensidades e decepções.
É uma vidinha em astronauta. Os capacetes estão colocados e os olhares divergem. Cada um dedicado a escrever o seu tomo sobre a influência dos héliotropos no desapego do mundo.
Qual poderá ser o resultado final desta indiferença mútua? Entre os Papuas – diz o geógrafo Baron, citado por Barthes – a linguagem é extremamente pobre; cada tribo tem a sua língua e o seu vocabulário empobrece constantemente dado que, depois de cada morte, se suprimem algumas palavras em sinal de luto.
Os jovens escritores de valia em Moçambique estão tão «exilados» como eu, sozinhos e invisíveis, pois os melhores dentre eles não se encostam à Associação de Escritores e têm um percurso autónomo, o que os deixa mais isolados. É o caso de Florindo Mudender, um caso interessantíssimo, que toda a gente teima em desconhecer, entre outras razões porque escreve em castelhano.
Florindo Mudender é um moçambicano cujos estudos de medicina levaram primeiro a Cuba, terra onde permaneceu 12 anos, antes de rumar a Espanha onde viveu mais 6 seis e conheceu o amor. É muito tempo fora da língua e cremos que essa afinal foi a sua grande vantagem para nos aparecer agora como um poeta maduro e universal, e é normal que escreva em castelhano depois de 18 anos de diáspora, depois de amar noutra língua. Só os muito frívolos é que podem não compreender como estes factores são não só vitais como dinâmicos.
Dizia Gilles Deleuze que pensar é gaguejar noutra língua. Queria ele dizer que não existe pensamento sem “rasgadura”, sem o esforço da ruptura e da distância, da mesma forma que ver é separar algo do amorfo. A vida do Florindo ao levá-lo a adoptar outra língua para a poesia, para o pensamento poético, trouxe-lhe uma grande vantagem pois não teve que se debater nem com os protocolos da sua tradição literária, nem com a ambiguidade de fazer uso de uma língua que foi a do colono.
Descobrir uma língua absolutamente exterior ao seu espaço de aprendizagem afectiva e cognitiva equivale a ter nascido canhoto e ter tido de aprender a escrever com a direita. O que pode não resultar numa “amputação”, mas ser ao invés uma abertura extraordinária, se isso corresponder a uma lateralidade do pensamento, a uma destreza que se adquira em duplo sentido e se abstenha de inibir um dos lados.
Quando se aprende a escrever noutra língua, levados pela vantagem das palavras não padecerem do peso emocional que tinham na nossa língua adquirimos uma maior relação com as possibilidades lúdicas da linguagem, com o jogo e o prazer da mesma, e também uma estranheza que nos leva a interrogar a sua transparência: comunicar deixa de ser uma mera funcionalidade, uma tradução linear, e começamos a inquirir a virtualidade do conhecimento da realidade através da linguagem.
Só quando duvidamos da transparência da comunicação é que começamos a ver a linguagem. Há centenas de pessoas que lêem esta frase: Mara amara-o, amargamente, sem darem conta do flagrante musical das palavras e que estão diante duma figura de estilo que se chama paranomásia. Mas aquele que de repente repara nas assonâncias da frase, e que existe três vezes a palavra mar nesta frase e o eco das ondas do mar na sua entoação, começa a ver a linguagem e a considerá-la numa perspectiva distinta da simples transmissão passiva de um conteúdo pré-definido.
Foi o que passou com o Fernando Pessoa, que escrevia em português pensando em inglês, o que o levou a criar uma sintaxe própria para a sua expressão, acabando com isso por criar novos jogos no desempenho da língua que mudaram para sempre o português literário.
Não sei a que caminhos levará esta singularidade de Florindo de escrever noutra língua que não a materna. Mas uma coisa é clara: o seu modo de abordar a realidade através do prisma da linguagem é absolutamente distinto daquele que se pratica em Moçambique e a sua poesia não tem equivalente neste momento no panorama da literatura Moçambicano.
Nem sei se saberei transmitir-vos de que fala o seu segundo livro, Oscilaciones. Não porque não haja nele um centro, um tema, mas porque este não é imóvel e se apresenta de modo tracejante, no intervalo das coisas: o núcleo deste livro é algo que se pode entrever mas não fixar, é mais uma cintilação que um recorte.
E para além disso não há modelo comparável em Moçambique, não há hipótese de lhe buscar um parentesco, de dizer, esta escrita parece-se com a de fulano ou beltrano. É absolutamente singular – a ter uma família convocaria os nomes de António Ramos Rosa e José Alberto Marques, portugueses, de Roberto Juarroz, argentino ou de Ghérasim Luca, um romeno que morreu em França. E seria forçar a nota: porque se parecem pelo que buscam e não pelos processos, pelo estilo.
Que buscam então estas criaturas, e Florindo com eles?
A sua é uma escrita que não procura fixar o mundo numa identidade, numa imobilidade fotográfica, mas iluminar os pontos de intercepção onde a linguagem possa capturar, para lá da translucidez do que nomeia, o seu movimento real. Isto é, a esta escrita não interessa tanto nomear ou delimitar as coisas num contorno ou num enredo narrativo, mas o que está entre as coisas, e nem sequer as coisas mas a relação entre elas; o jogo das relações das coisas entre si, as suas intersecções, a sua natureza dúplice, complementar é que comanda esta escrita. Diz um poema:
«Há a forma da água que se acomoda à ancestral
geometria da tijela a forma da mão que se
acomoda à redondez e turgência da tijela Há
a forma da mão que se acomoda à branda
curvatura do cajado
Há a peça de xadrez e a forma da mão que se
acomoda à concavidade de outra mão Há a forma
da mão que se acomoda ao vazio Há uma seta
que foge do arco Há uma chave e uma fechadura
de cobre Há na alba a bruma que se dissipa Há
a firmeza da batente na porta há a véspera e as suas
ânsias Há o que vislumbro e perco Há a tijela
anelante»
Este é um mundo desprovido de dualidade, em que os pares se revelam simétricos e não separados. A nossa consciência tende a isolar as coisas, esta poesia tende a re-ligá-las para lá das aparências, para lá das identidades fixas.
Vejamos este outro poema:
«Se encontro um saguão e um pátio de laranjeiras
se vacilo e me demoro no umbral incerto e ao tocar a
porta esta se abre Se o teu olhar me deslumbra ou
me queima Se se sedimenta em delta
a nostalgia
Se mantenho a devoção pela água e pelo sal pela
areia dos relógios e pela sombra que ao entardecer
se alarga pelo fio que se enreda pela luz branca e
pelo que nela se revela pelo ímpeto da voz que
canta pela lua que vai minguando
Se me esmaga a possibilidade de executar um acto novo»
O poema parece ter sido suspenso e não acabado. Como o dia que precedeu a noite, como as nossas crenças face a um mar de rotinas. Mas o que me interessa realçar agora é: Quem fala aqui? É o autor? É o leitor? É claramente um impessoal que se pressente nas zonas de vizinhança, quando já não distinguimos o sujeito do evento que desencadeou, as pessoas do equilíbrio em que se suspenderam, numa correspondência nova.
E quem é o insone, convocado tantas vezes neste livro? Talvez a resposta esteja dada por si, se não nos esquecermos que na insónia é a linguagem quem nos fala e como sofremos quando sentimos aí que o eu se nos apaga.
Não se procurem, por isso, em Oscilaciones declarações psicológicas, a confissão e o sentimento, uma opinião sobre os enredos do mundo, fórmulas ou respostas, declarações de amor. Este é um tipo de poesia muito diferente, que prefere perseguir o trânsito das coisas e captar o inacabado, o que está nos interstícios, nos intervalos, o que se vivifica nos meandros da linguagem.
E o que visa é mais subtil, é surpreender as coisas antes do nome, surpreender a relação entre as coisas e não as coisas isoladas, surpreender de que modo cada coisa contém o seu contrário. Daí que por exemplo, do ponto de vista estilístico, se constate uma comparência tão grande de oximoros.
O oximoro é uma figura de estilo que consiste em reunir palavras ou expressões aparentemente contraditórias, por exemplo, quando dizemos: um silêncio eloquente.
Este livro está crivado de oximoros, em toda a sua extensão.
«se a promessa de abundante água abrasa a minha sede»;
«o vertiginoso sossego»;
«o ponto fixo no centro de um prato giratório»;
«a luz intensa que ofusca a realidade»;
«o grito afogado»,
«as vozes tresnoitadas nas choças onde se apagou a fogueira»;
etc., etc., os oximoros sucedem-se num armadilhamento contínuo de todas as certezas.
Quanto mais leio Oscilaciones mais fico certo de estar em presença dum poema único, que funciona como um caleidoscópio. Porque a chave para este corpo de poemas não se dá por um só ângulo. À primeira vista, distraidamente, estes poemas fazem suceder uma longa enumeração de incidências, depois damos conta que estas organizam núcleos e ordenam uma visão própria para as coisas. Que visão?
Imaginemos que o tempo é um rio com correntes desencontradas, que não há um tempo único, mas muitos fluxos que correm paralelos, ou às vezes no reverso uns dos outros, enfeixando-se, como uma luz que atravessa um estore às lâminas e une momentaneamente num vislumbre o que estava separado. Este livro vive respira, nesse entre. Cada lâmina do estore é uma parcela do tempo, diferente, sobre a mesma paisagem. Por isso o livro se chama Oscilaciones e instaura no seu leitor uma dúvida persistente, a de saber se as propriedades da própria linguagem, como encantamento do mundo, resistem ao seu devir indeterminado e aos efeitos do tempo:
«Uma pedra de luz A que brilha no bordo afiado de uma navalha Uma luz que se conserva num globo de cristal A que pisca e se apaga».
A pedra de luz, a que se pisca e apaga, como a palavra que agora encanta e amanhã murcha. Ainda há esperança? Há esperança para o sortilégio da palavra? O livro dá a resposta, no jogo de polarizações que organiza e que às vezes, como um espelho diante do espelho, faz um poema responder a outro.
Assim, há um excerto curioso em que se interroga a vã ilusão da linguagem e se ilustra a demanda do poeta com uma famosa e terrível fábula de Chuang Tzu, o taoista que nos contou a história de um príncipe atormentado por que não sabia se era um príncipe que sonhava ser uma borboleta ou se era uma borboleta que sonha ser um príncipe.
Lê-se então numa página, este canto de incerteza, como um semáforo intermitente:
«Se entre o pensamento e o acto me demoro mais que o devido
se em vão tento iludir o labirinto que é a insónia
se determinado aroma e sabor me contentam mais do que outros
se o princípio confina com o fim Se em busca
do sonho outra vez deflagra a insónia
Se premeditadamente derramo a água de minha tijela e
me abrasa a sede Se a diáfana visão
da formosura que me coube se converte na minha tormenta
Se a minha tormenta nasce de um sonho como o sonho
da mariposa de Chuang Tzu
se me aterra a brancura do sol e a redondez da luz
se a cifra do que emerge com a luz esgota a cifra
que a cabala pode abarcar se me embarga a angústia
de remexer na mente uma ideia esquecida Se me alivia
a visão de algo perdido ou detonado
Se volto a errar pelas mesmas antigas ruas e se o
caminho se bifurca…»
E na outra página acende-se a luz verde:
«Há um passado que no entanto volta com
nitidez e há o pó que levantam da terra ressequida
as primeiras gotas de chuva Há as arestas e os
ásperos perfis que o vento suaviza Há prenhe sob a
névoa o campo de girassóis Há os contornos
indefinidos de uma rosa Há os atributos
que completam e definem uma rosa».
Definir uma rosa, o modo como trepa pelo braço do leitor e lhe pica o braço já não é nada mau como projecto poético, pois como explicou Henri Michaux «em poesia, vale mais sentir um estremecimento a propósito de um gota de água que cai em terra e comunicar esse estremecimento do que expor o melhor programa de entreajuda social.
Essa gota de água provocará no leitor mais espiritualidade que os maiores estímulos à elevação de sentimentos e mais humanidade que todas as estrofes humanitárias.»
Isto é, em poesia a transfiguração poética, o que é encetado neste livro, só se dá quando se tenta nomear a rosa com a língua que é a sua e não apenas com os nomes correntes.
E é com a rosa, sabendo que uma rosa é afinal um gala-gala virado pelo avesso, que vos deixo, isto é que vos deixo com o Florindo e a sua arte bilingue:
Uma gravura de Durer O leito que borbota nas
rachaduras do alcantilado O bordo irregular de uma
rua O bordo irregular de mim mesmo
A sombra: a minha sombra que às vezes se dilui na tua
As cinzas e a moeda de cobre e a outra de prata
Os desenlaces que a memória vai urdindo A lombada
gravada dos livros A grinalda no bordo do muro
A pedra-pómus
Os misteriosos seres consagrados nas mitologias
O que desagrega as multidões e aquele que as une
O biombo que multiplica os espaços Aquele que
perdura nos espelhos
O que de ti me aproxima.
Sem comentários:
Enviar um comentário