terça-feira, 11 de setembro de 2012

XAVIER & XAVIER: O SANTO E O PASTOR

                                                                     walter zandamela

Se a vida dos santos não é fácil, o repouso eterno pode não convocar a mais insofismável placidez. Que o diga S. Francisco Xavier. Conta-o Almeida Faria em O Murmúrio do Mundo (Tinta da China, 2012), onde relata a sua viagem à Índia:
«Depositado na Igreja do Bom Jesus», (em Goa),«o corpo era exposto no aniversário da sua morte, festa em que os fiéis lhe beijavam os pés. Numa dessas festas, uma tal Isabel, aproveitando a confusão, arrancou-lhe com os dentes um dedo do pé e levou-o para casa metido na boca. Noutra ocasião. Outro adorador arrancou-lhe outro dedo, de modo que, dos pés deste constante caminhante, sobram agora, apontados aos céus, dois dedos grandes, um de cada pé.
Melhor sorte não teve o braço direito, que tanto abençoou, tratou e ressuscitou gente. Parte dele despegou-se do tronco e, por ordem do papa Paulo V, em mil seiscentos e catorze o antebraço e a mão seguiram para Roma. A Província dos jesuítas no Japão pediu o resto do braço. Setenta anos após a sua morte, o Apóstolo do Oriente foi canonizado e, desde aí, a crença nos seus milagres não deixou de aumentar.
(…) Corpo que ficou em Goa quando no século XVIII, expulsa a Companhia de Jesus de todos os territórios portugueses, os jesuítas de Goa foram levados sob prisão até Lisboa (…)
Teriam levado consigo o ressequido corpo de Xavier, se disso os não impedisse o vice-rei
pois bem sabia que com este corpo, antes que com muralhas e armas, se salvara mais de uma vez a cidade de Goa de uma invencível invasão de inimigos, e nem também os cidadãos goanos consentiriam que os levasse o santo Xavier que eles consideravam como o para-raios.»
Pois não sei que vos diga – antes gentio.



Também se chama Xavier e é pastor. Ou foi. Em Manica. Há cinco anos resolveu rumar a Maputo porque nas noites sem geada, o gado guardado pelo cão, encheu vários cadernos com uma letra mais emaranhada que um quilo de formiga argentina sobre um escaravelho de patas para o ar, e agora, dizia, tinha um romance que queria ver publicado.
Alguém mo mandou, a este pastor que os únicos livros que leu inteiros se resumiam a um manual de enfermagem e a uma novela passada na II Guerra Mundial. Esta, jurava, tinha caído de um helicóptero que havia sulcado os céus da pastagem.
Achava graça à coragem do jovem e à sua “louca” determinação mas a preparação dele parecia-me deficiente. Acabei por remetê-lo para o editor de um semanário, no fito dele o encaixar como paquete ou estagiário.
Voltei-o a ver um ano depois: era arrumador de carros. Perguntei-lhe pelo livro. Disse-me que fora à Ndjira (a editora) mas que o haviam mandado digitar os cadernos. Passei-lhe duzentos paus para ele ir a um cibercafé passar umas páginas a limpo.
Nesse mês cravou-me mais duas vezes. Uma delas acidentalmente à porta de minha casa, andava ele à cata de beatas. Depois desapareceu durante dois meses.
Um dia bate-me à porta um miudinho de sete anos que se identifica como o filho do Xavier. Um catraio levemente altivo e de fala articulada. Mostra-me o BI do pai, que estava internado no hospital – tuberculose. Pedia leite ao sr. António para levar para o pai. Foram meses de sacos com leite, pão, fruta.
Mudo de casa e esqueço o Xavier e o seu filho.
Até ontem, três anos depois. Estava numa esplanada com o músico Chico António e aparece o puto.
Maior, upa upa.
Continua de porte altivo e fala articulada. O sr. Cabrita e o sr. Chico, nomeia, sem espinhas. Como é, pergunta o Chico, conheces-me? Estive duas vezes consigo, com o meu pai, e conta uma conversa entre eles, no intervalo de um concerto do Chico.
Então e o teu pai, está melhor, pergunto?
Ya…
E que faz?
Está deitado, é muito dorminhoco… - observa, num tom levemente reprovador.
Não trabalha? – pergunta o Chico.
Dorme muito, dorme e lê… - repete.
Então e que vais fazer quanto a isso? - inquiro, intrigado.
Quero levar o meu pai para Manica… lá ao menos podemos vender batata doce… - redargue, lesto – aqui é que não faz nada…
E alguma coisa vos impede de ir? Têm muita coisa para levar?
Não… só ele, eu… e a minha roupa.
O Chico ri com a sugestão do fardo. Eu olho-lhe a t-shirt suja, de quem não tem outra. O miúdo é vivo e, adivinha-se, sente-se responsável pelo pai. Damos-lhe vinte paus cada um para ele comprar pão e os nossos números de telefone, para organizarmos um retorno deles a Manica, de chapa. E eu prometo-lhe duas ou três t-shirts da minha filha.
Hoje batem à porta ao meio-dia. É ele. Já me localizou (deve ter-me seguido). Mando-o vir uma hora depois, quando as miúdas já tiverem chegado da escola, para escolherem com ele as t-shirts.
Volta a bater à porta. Tem direito a 2 t-shirts e a uma omelete com batatas. Comenta, num relance pela sala: o sr. Cabrita continua a ter muitos livros.
Enquanto ele come na cozinha vou às estantes e arranjo dois livros de aventuras e uma antologia de poesia das lusofonias, e meto-os num saco.
Após o que lhe digo, como já tens dez anos dou-te dois livros de aventuras, e se tu quando os acabares de ler me vieres cá a casa contar as histórias dos livros dou-te mais. Noto-lhe um ar fugidio, resolvo tirar A limpo:
Sabes ler, não?
Saco um dos livros, que tem na capa um elefante branco e caçadores e inquiro, apontando o título:
Que lês aqui?
A primeira palavra, que tem duas sílabas, ainda lê, mas encalha na segunda, com quatro sílabas, e é um tormento para ler a palavra «elefantes», apesar do desenho que a ilustra. Descubro com surpresa que o miúdo não sabe ler, com dez anos, apesar do ar atilado de um menino bem-falante.
Insisto:
Tens de dizer ao teu pai que eu o mandei auxiliar-te na leitura, ouviste? Tens que fazer um esforço, só depois de me contares esta história é que te dou outro...
Ele sai, e despede-se à porta, não sem hesitar e fazendo a máscara de quem tem debaixo da língua o pedido de uma moeda.
Fecho a porta e a Teresa sentencia:
Os livros, vais encontrá-los à venda amanhã, à porta do mercado Mandela…
Gostava que ela não tivesse razão. Mas percebo que o pastor Xavier candidato a escritor, vive da esmola do filho que não alfabetiza.
Merda, vocifero, censurando a minha compaixão ao espelho.   

   

 

 

 

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