quarta-feira, 5 de setembro de 2012

CHOVE, ALVÍSSARAS

                                                                        roberto matta


 
Chove. Não em gotas mas numa espessa cortina translúcida, que se abate como se fosse um cristal mole. Sinto-me em Londres. Há meses que não chovia em Maputo. Não desta maneira. É um dia para ficar em casa, expressamente.
 
Acordei a pensar no belo bonsai da minha amiga Fátima.
Não se pensa num bonsai articuladamente mas em bloco, é uma imagem que não se decompõe, indivisível. Já tive um bonsai, uma oliveira. Tinha uma ventoinha perto dele que às vezes ligava para que a árvore conhecesse o vento, se despenteasse um pouco.
Suspeito que o da Fátima está sempre de risca ao meio. Faz-me lembrar o Kevin Kline, magnífico actor porque sabe despentear o que nele existe de composto.
Gostava que me oferecessem um bonsai. Acho que na reforma, que não terei, me dedicarei a cultivar bonsais. Será esse o meu negócio.
 
Estou a ler Jerusalém, do Gonçalo. Foi o último livro que ele me mandou, antes de ter vindo para Maputo. Na dedicatória tem a data, outubro de 2004. Em janeiro de 2005 debandei. Só o recuperei passado dois anos.
Estou na página 63. Brilhante e perturbador porque é uma escrita sem afecto, no oposto da minha – que está encharcada de pathos. A abertura é soberba, a tese de Theodor sobre a História instigante, e a narrativa evolui como uma máquina que nunca se dá folgas. Estou curioso para ver onde conduz esta tensão. A corrida de Ernst tem claramente o dedo de Rilke.
Gosto, para já, deste reencontro.
 
Tomei uma nota, numa página em branco do livro, que vou utilizar para a criação de uma personagem: “Bebia para ter medo, porque de natural lhe faltava essa reserva e tudo lhe parecia obscenamente simples, mesmo matar. Bebia para descoordenar a plausibilidade das suas tendências e ganhar uma fragilidade que o pusesse cauteloso…
 
Hoje escreverei dois capítulos do romance e tentarei traduzir dois ou três poemas da antologia que me comprometi a fazer da Luisa Futoransky, uma poeta argentina de grande voltagem e de quem me tornei amigo por causa de umas traduções avulsas que fiz de alguns dos seus poemas e que lhe agradaram. O seu último livro Ortigas, tem uma energia extraordinária, e numa antologia que ela me enviou há uma interessantíssima “reportagem” poética sobre uma visita a Lisboa. Que a chuva continue e me anime a ficar em casa “a conversar com as letras”.
 
Fiz uma nova versão para o poema Apostas de Cavalos, dedicado ao Jorge Corvo, e aqui a deixo:
 
Ah, ser um poeta didáctico,
dos que cifram em alexandrinos
o preciso ponto que desfaz a quitina
remoída nas mandíbulas
das flores carnívoras,
ou ser um deus capaz de morrer
com o hálito mais puro.
Um deus de imenso pedigree,
tão subtil que já não discerne
se é deus, se o seu luto.
Mas calhou-me este calhordas,
ser o inábil alfaiate que com a boca
prenhe de alfinetes se esqueceu
de matar as cócegas
à viscondessa do Xai-Xai.
Tão pobre que, perdulário inconfesso,
fica incapaz de desembainhar
por diante a lâmina do pensamento.
Saciam-me as orlas, delas faço bainha.
Jamais há dias - apenas
noites albinas.
O tempo é uma estela
de maravilhas e desastres
diz o outro. Um deles
que eu já não possa
arrancar os olhos àquela
de onde nunca devia ter saído.
 
O senhor que se vê de costas
nestes versos não é feliz, foi sete vezes
à Ciocciara mas não é feliz
e no rosto escarificações
e tatuagens não lhe trazem
qualquer consolo à sensação
de que o futuro é um reles
número de conta bancária.    
 
Revejo na alma a casca
do caracol, a baba do daimon,
e maldigo-me, preferia
ter nascido girassol
de um escol que segue o astro;
ao menos no fragmento
450 digo como é: professo
a metempsicose,
ah, ter sido o mosquito que quis aterrar
na alvíssima palma da mão que no acto
imediato de enxotar-me rodou
o tambor da pistola oceânica
carregando-a com a Ode Marítima
dá-me alento, é a única coisa
que me força a levantar
e a comprar um garrafa de gim
e a carregá-la no bolso
na mira dos goles
com que fixarei de frente
os coices que receberei
nas apostas de cavalos.

 

 

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