Chove. Não em gotas mas numa
espessa cortina translúcida, que se abate como se fosse um cristal mole.
Sinto-me em Londres. Há meses que não chovia em Maputo. Não desta maneira. É um
dia para ficar em casa, expressamente.
Acordei a pensar no belo bonsai da minha amiga Fátima.
Não se pensa num bonsai articuladamente mas em bloco,
é uma imagem que não se decompõe, indivisível. Já tive um bonsai, uma oliveira.
Tinha uma ventoinha perto dele que às vezes ligava para que a árvore conhecesse
o vento, se despenteasse um pouco.
Suspeito que o da Fátima está sempre de risca ao meio.
Faz-me lembrar o Kevin Kline, magnífico actor porque sabe despentear o que
nele existe de composto.
Gostava que me oferecessem um bonsai. Acho que na reforma,
que não terei, me dedicarei a cultivar bonsais. Será esse o meu negócio.
Estou a ler Jerusalém,
do Gonçalo. Foi o último livro que ele me mandou, antes de ter vindo para
Maputo. Na dedicatória tem a data, outubro de 2004. Em janeiro de 2005 debandei.
Só o recuperei passado dois anos.
Estou na página 63. Brilhante e perturbador porque é
uma escrita sem afecto, no oposto da minha – que está encharcada de pathos. A
abertura é soberba, a tese de Theodor sobre a História instigante, e a
narrativa evolui como uma máquina que nunca se dá folgas. Estou curioso para
ver onde conduz esta tensão. A corrida de Ernst tem claramente o dedo de Rilke.
Gosto, para já, deste reencontro.
Tomei uma nota, numa página em branco do livro, que
vou utilizar para a criação de uma personagem: “Bebia para ter medo, porque de natural lhe faltava essa reserva e tudo
lhe parecia obscenamente simples, mesmo matar. Bebia para descoordenar a plausibilidade
das suas tendências e ganhar uma fragilidade que o pusesse cauteloso… “
Hoje escreverei dois capítulos do romance e tentarei traduzir
dois ou três poemas da antologia que me comprometi a fazer da Luisa Futoransky,
uma poeta argentina de grande voltagem e de quem me tornei amigo por causa de
umas traduções avulsas que fiz de alguns dos seus poemas e que lhe agradaram. O
seu último livro Ortigas, tem uma
energia extraordinária, e numa antologia que ela me enviou há uma interessantíssima
“reportagem” poética sobre uma visita a Lisboa. Que a chuva continue e me anime
a ficar em casa “a conversar com as letras”.
Fiz uma nova versão para o poema Apostas de Cavalos,
dedicado ao Jorge Corvo, e aqui a deixo:
Ah, ser um
poeta didáctico,
dos que cifram
em alexandrinos
o preciso ponto
que desfaz a quitina
remoída nas
mandíbulas
das flores
carnívoras,
ou ser um deus
capaz de morrer
com o hálito
mais puro.
Um deus de
imenso pedigree,
tão subtil que
já não discerne
se é deus, se
o seu luto.
Mas calhou-me
este calhordas,
ser o inábil
alfaiate que com a boca
prenhe de
alfinetes se esqueceu
de matar as
cócegas
à viscondessa
do Xai-Xai.
Tão pobre que,
perdulário inconfesso,
fica incapaz
de desembainhar
por diante a
lâmina do pensamento.
Saciam-me as
orlas, delas faço bainha.
Jamais há dias
- apenas
noites
albinas.
O tempo é uma
estela
de maravilhas
e desastres
diz o outro. Um
deles
que eu já não
possa
arrancar os
olhos àquela
de onde nunca
devia ter saído.
O senhor que se
vê de costas
nestes versos
não é feliz, foi sete vezes
à Ciocciara
mas não é feliz
e no rosto
escarificações
e tatuagens não
lhe trazem
qualquer
consolo à sensação
de que o
futuro é um reles
número de
conta bancária.
Revejo na alma
a casca
do caracol, a baba
do daimon,
e maldigo-me, preferia
ter nascido
girassol
de um escol
que segue o astro;
ao menos no
fragmento
450 digo como
é: professo
a
metempsicose,
ah, ter sido o
mosquito que quis aterrar
na alvíssima palma
da mão que no acto
imediato de
enxotar-me rodou
o tambor da
pistola oceânica
carregando-a com
a Ode Marítima
dá-me alento, é
a única coisa
que me força a
levantar
e a comprar um
garrafa de gim
e a carregá-la
no bolso
na mira dos
goles
com que
fixarei de frente
os coices que
receberei
nas
apostas de cavalos.
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