O poema chama-se Uma Faca Só Lâmina, e sempre me fascinou.
São 87 quadras, divididas em 7 secções.
Vou transcrever algumas, o começo e outras quadras:
«Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
(…)
qual uma faca íntimaou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra os seus próprios ossos.
A
(…)
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):
(…)
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfregaque a imagem de uma faca
reduzida à sua boca
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
B
(…)
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e vive a se parirem outras, como fonte.
C
(…)
O importante é que a facae o seu ardor não perca
e tampouco a corrompa
o cabo de madeira.
(Veja-se
a felicidade destes versos que sublinho:)
DPois essa faca às vezes
por si mesma se apaga.
É a isso que se chama
maré-baixa da faca.
(…)
I
Essa lâmina adversa
como o relógio ou a bala,se torna mais alerta
todo aquele que a guarda,
os objectos em torno
e até os próprios líquidos
podem adquirir ossos.
E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.
(…)
De volta dessa faca,amiga ou inimiga,
que mais condensa o homem
quanto mais o mastiga;
de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;
(…)»
Já adivinharam. O poema é do
pernambucano João Cabral de Melo Neto.O que não era adivinhável era o pulo que eu dei quando ao preparar uma aula sobre o Macbeth deparo com o monólogo do Macbeth, que antecede o assassinato que perpetrará sobre Duncan, o rei. No segundo Acto, cena 1.
Na penumbra do seu quarto de castelão, Macbeth, contíguo ao do rei, seu convidado, é varado pela premonição das bruxas, e vê de repente o punhal que no escuro brilha para ele - «com o cabo dirigido para mim», acentua.
São trinta e duas linhas em que assistimos à convulsa metamorfose de Macbeth em homem-faca, ou em faca-só-lâmina: o oculto esqueleto.
Só Cabral poderia responder se o seu poema irradiou do contacto com este monólogo de Macbeth, ou se é apenas uma coincidência, mas existem sinais de engarrafamento na auto-estrada que os une.
Talvez Macbeth, que não dormia, o tivesse soprado a Cabral num sonho.
Batam sinos.
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