quarta-feira, 12 de setembro de 2012

CABRAL E MACBETH: VASOS COMUNICANTES



O poema chama-se Uma Faca Só Lâmina, e sempre me fascinou.
São 87 quadras, divididas em 7 secções.
Vou transcrever algumas, o começo e outras quadras:

«Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;
(…)
qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto
 
de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra os seus próprios ossos.

A
(…)

Por isso é que o melhor
dos símbolos usados

é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):

(…)
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega

que a imagem de uma faca

reduzida à sua boca
 
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.

B
(…)
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
e vive a se parir

em outras, como fonte.

C
(…)
O importante é que a faca

e o seu ardor não perca

e tampouco a corrompa

o cabo de madeira.

(Veja-se a felicidade destes versos que sublinho:)
D

Pois essa faca às vezes

por si mesma se apaga.

É a isso que se chama

maré-baixa da faca.

(…)
 
I

Essa lâmina adversa
como o relógio ou a bala,

se torna mais alerta

todo aquele que a guarda,
 
sabe acordar também

os objectos em torno

e até os próprios líquidos

podem adquirir ossos.
 

E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria,
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.
 

Em volta tudo ganha

a vida mais intensa,

com nitidez de agulha

e presença de vespa.
 
(…)
De volta dessa faca,

amiga ou inimiga,

que mais condensa o homem

quanto mais o mastiga;

 
de volta dessa faca
de porte tão secreto
que deve ser levada
como o oculto esqueleto;

(…)»
Já adivinharam. O poema é do pernambucano João Cabral de Melo Neto.

O que não era adivinhável era o pulo que eu dei quando ao preparar uma aula sobre o Macbeth deparo com o monólogo do Macbeth, que antecede o assassinato que perpetrará sobre Duncan, o rei. No segundo Acto, cena 1.
Na penumbra do seu quarto de castelão, Macbeth, contíguo ao do rei, seu convidado, é varado pela premonição das bruxas, e vê de repente o punhal que no escuro brilha para ele - «com o cabo dirigido para mim», acentua.
São trinta e duas linhas em que assistimos à convulsa metamorfose de Macbeth em homem-faca, ou em faca-só-lâmina: o oculto esqueleto.
Só Cabral poderia responder se o seu poema irradiou do contacto com este monólogo de Macbeth, ou se é apenas uma coincidência, mas existem sinais de engarrafamento na auto-estrada que os une.
Talvez Macbeth, que não dormia, o tivesse soprado a Cabral num sonho.
Batam sinos.
 

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