sexta-feira, 14 de setembro de 2012

E QUE BATA UMA ARAGEM...


Num almoço agradável com vários convivas ouço uma amiga, que se assume como Espírita, a explanar sobre as particularidades da sua crença, de uma forma serena e equilibrada, diria até, sem ponta de “irracionalismo”. Discorreu longamente e de uma forma isenta, destituída de qualquer presunção fanática. Inclusive pensei, “aqui está um caso de alguém a quem a crença trouxe ponderação!”. E esta é, infelizmente, uma aliança difícil de detectar, quando devia ser natural.

Só a dado momento lhe sai uma frase que me horroriza. Diz, “não existe acaso, nada acontece por acaso!”, e entrevejo ali as fauces vorazes do holismo, a teia que oprime. Porque o holismo tem uma vertente patológica como todas as coisas boas, um lado de sombra.

Vou dar dois exemplos: no hinduísmo há uma menor sensibilidade aos problemas sociais porque se aquela criança sofre nesta vida isso é apenas a expressão da rigorosa simetria kármica, sendo um efeito dos actos cometidos pela criança na vida anterior.

Em África não se aceita que a morte possa ter sido acidental, e muitas mulheres são acusadas pela família do morto de terem causado a morte do marido, num acto de manifesta demência, e, na flagrante maioria dos casos, com uma enorme injustiça para a esposa – loucura que se dissemina e
infiltra no tecido social.

O Budismo introduziu a Compaixão e o Cristianismo a Caritas para tentarem romper com esta lógica, mas em muitas outras crenças e religiões a gaiola das causalidades prevalece sobre a sensibilidade à experiência, à necessidade de responder ao agora.

É uma lógica tremenda que transforma o mundo num palco platónico, onde não passamos das sombras de algo – uma lei inextricável, entidades, do nosso próprio destino -, num determinismo que calcina todas as singularidades mas que estranhamente fascina.

A conquista da modernidade ancorou na conquista do acaso e do aleatório, subtraindo as incidências de uma vida a esse determinismo feroz que encerrava o mundo numa teia. Quando a Renascença libertou o corpo da influência dos astros esse foi um momento em que a sexualidade se aliviou das culpas e em que o individualismo e a sua volição puderam emergir.

Há uma inequívoca implicação moral na frase “não existe acaso, nada acontece por acaso!”, que devia funcionar como chave para o auto-conhecimento e o auto-juízo, o problema é que, de comum, essa frase é manejada para se buscar uma razão para as coisas no exterior a nós, no outro. É um álibi.

Corre hoje no mundo uma tentação holística, como na Idade Média houve uma tentação satânica, sem grande reflexão sobre as suas consequências. Porque não basta queremos ligar tudo numa corrente de afecto. Até pelo mais inesperado: o próprio afecto pode matar.

Mas dou conta graças aquela mulher culta, equilibrada, inteligente, que “o combate” se deslocou no início deste século.

Um dos grandes equívocos do século XX foi a falsa dicotomia entre «racionalismo e irracionalismo», debate que se estendeu a todos os campos, inclusive à arte. Primeiro, confundia-se racionalidade (o lado positivo da razão) com racionalismo (a feição patológica da razão), e articulada nesta falta de discernimento confundia-se irracionalismo com liberdade. Quase toda a arte do século XX, com o Surrealismo à cabeça, laborou neste erro.
A falácia ainda existe apesar de se ter consolidado por toda a parte a emergência do «Irracionalismo» e as consequentes correntes relativistas que se lhe seguiram.
Mas no essencial muito do que se passou no século XX girou em torno desse choque entre dois
paradigmas: Racionalismo versus Irracionalismo.

Agora, verifico, há que salvar a indeterminação, o acaso, o aleatório da terrível tentação da gaiola das causalidades. O holismo, na sua feição patológica, pode ser o  reducionismo que se põe a jeito como uma nova «narrativa escatológica».

Será «por acaso» que o holismo emerge no momento em que o neo-liberalismo e o seu cínico desprezo pela pessoa humana sitia tudo, todas as liberdades, todos os direitos adquiridos?

A consciência holística trouxe de positivo uma maior consciência ecológica mas seguido com rigor escolástico abafa a realidade sob a manta de um determinismo que é muito mais do que incómodo: todas as grandes ideologias autoritárias são holísticas.

A minha amiga saberá conjugar a sua crença holística e transpessoal com a liberdade e a responsabilidade que cada momento nos pede – mas quantos farão a destrinça, ao abrigo de uma Lei que tudo explica e abarca?
Quantos não se abandonarão ao que é?

A consciência do indeterminado traz a consciência trágica, como o sabiam os gregos, mas traz também o arbítrio e a coragem da decisão.
E disto não poderemos abdicar.

Para além disso, como mostra Drummond no poema "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade:

 João amava Teresa que amava Raimundo
       que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
       que não amava ninguém.
       João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
       Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
       Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
       que não tinha entrado na história.
a Realidade corre sempre por fora da pista, na plena exterioridade aos nossos conceitos. É o que nos vale – há sempre um J. Pinto Fernandes a despontar no exacto momento em que julgávamos ter as coisas sob controle.  

 

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