Há um certo ar do tempo que aparentemente actualiza algumas premissas do Existencialismo e que leva a que neste momento se “recupere” Camus, por exemplo. Está de novo na moda.
O século XX desenvolveu um tipo de pensamento e de concepção moral que prescindiam do recurso a uma instância superior, a Deus, ou a outras abstrações ideológicas. Durante algum tempo funcionou, embora isso significasse que o homem estava face a face com aquilo a que Camus e Sartre apelidavam de “a medonha liberdade”.
“Não há mais homens culpados, escreveu Camus, mas apenas homens responsáveis”. Esta asserção pareceu uma coisa prometedora quando foi pronunciada.
Setenta anos depois estamos na ressaca da liberdade e o tema dominante é “a segurança”. Mesmo o debate em torno da “segurança social” e da salvaguarda das “reformas” prende-se no fundo a uma necessidade de manter uma certa margem de previsibilidade na projecção do (meu) futuro. É evidente que a questão dos “direitos sociais adquiridos” deve ser considerada mas ao fundo de tudo, no ADN, digamos, existe o medo a ser sem rede.
E hoje volta o que, afinal, nunca foi superado mas esteve apenas recalcado: incapaz de suportar a incerteza ou a responsabilidade diante da incerteza o homem – cansado dos horrores e da falta de grandeza de que tem sido capaz sem Deus (exactamente do mesmo quilate das vilezas cometidas com Deus) – quer de novo recair nos padrões pré-estabelecidos, abandonando-se ao desfrutre dos estereótipos postos à sua mão de semear – religiosos, políticos, filosóficos, e assim por diante.
Qual o melhor instrumento para este retorno à “segurança”?
O airbaig que “a cultura de massas” nos oferece, com a ilusão de que somos todos semelhantes e temos acesso a um igual repertório de estereótipos e a as redes sociais, onde reagimos sincronizadamente, em interacção, como os cardumes. O sentimento de pertença a um padrão de gosto universalizado ou “especializado”, são as duas faces de uma mesma ilusão, a que nos vai valendo na aflição de nos queremos cegos à força. “Cultura de massas” e Facebooks vivem num «imaginário de aliança» (e é brutal constatar que um imaginário de aliança se difunde num momento em que os desequilíbrios económico-sociais se institucionalizam com o triunfo neo-liberal) e por isso uma das palavras que o representa é o verbo “Partilhar”.
Partilhar gostos, preferências, com manifesta bondade, criar comunidades é uma espécie de comunitarismo licorizado que nos apraz.
A esta busca de unanimidade chamava Camus «o suicídio filosófico».
Bion, o psicanalista, descartando-se da ideia de funcionar como “guia” para a orientação dos seus pacientes: “… não acredito que eu saiba conduzir nem mesmo a minha própria vida. Muitos anos de experiência me indicam que continuo existindo mais por sorte do que por julgamento – esta é a única forma que posso colocar…”
Espantosa honestidade de um dos grandes psicanalistas do século XX, o britânico Bion, mas imagino o susto do paciente ao enfrentar tais convicções do seu terapeuta.
E o meu ao constatar que continuo a existir mais por azar que por julgamento.
«Com muita frequência, acaba sendo danosa a persistência
e sobrevivência de atitudes morais que em alguma época podem ter sido valiosas.
Por exemplo, posso ver que o patriotismo poderia ter sido uma característica
valiosa; foi com certeza importante, nalguma época do desenvolvimento da
pessoa, que ela aprendesse a ser leal para com os seus contemporâneos.Só que também penso que você pode chegar a uma época
na qual esta formulação, possivelmente valiosa no seu momento, se torna
inapropriada caso persista além do período durante o qual a formulação e o seu
contexto se equiparavam. A persistência de tal moralidade pode ser perigosa...»,
diz Bion.
Que falta faz isto ser percebido por uma certa
elite africana que faz da «tradição» um finca-pé- boto.
A facilidade com que ouço dizer que as crianças de
hoje estão mais atentas, estão mais conectadas, aprendem mais rapidamente e
sobretudo manejam as tecnologias com uma habilidade inigualável. Tudo isto é
verdade e não é, simultaneamente. “Cresceu” de facto a inteligência, se a
tomarmos no seu sentido pejorativo, como a nossa capacidade para “aprender
truques”.
Mas para além da assustadora redução no espectro do
vocabulário que encontro na maior parte deles, em raros jovens muito informados
e especializados em determinada área encontro eu uma poética que filtre e traduza uma
expressão para a sua leitura da realidade.
São tremendamente informados e tremendamente passivos.
As belezas da arte seriam então a correspondente resposta à beleza da criação.
Sigo o que escreve Safranski no seu livro sobre O Mal. Onde também aponta que este enlace não se daria sem dificuldades e terrenos pantanosos, segundo Agostinho.
Uma das ambiguidades derrapantes associa-se ao problema do desejo, pois se nos aproximamos das coisas pelo ângulo do desejo, a beleza escapa-se-nos. Simplesmente, para o desejo o mundo transforma-se num obscuro objecto e o obscuro objecto do desejo não nos permite uma atitude estética – a reserva de nos distanciarmos. O desejo devora, aquele que deseja é devorado pelo objecto que deseja.
É este o tema de Esse Obscuro Objecto do Desejo, de Buñuel, afinal uma fita agostiniana, com as suas duas actrizes a representarem o mesmo papel – Carole Bouquet e Angela Molina.
O filme adapta um livro do herético e pornógrafo Pierre Louys o que torna a associação mais picante.
E o relevante é o que conta o próprio cineasta, quanto à forma como o filme foi recebido: «Ao princípio eu dizia, Vão pensar que são duas pessoas diferentes. Mas não, o público percebeu-as como não fazendo senão uma. O que prova bem que há no cinema qualquer coisa da ordem do hipnotismo». Foram também os espectadores devorados pela instigante e perturbadora flutuação de carácter que aquela mulher parecia ter e que a tornava tão irresistível? O desejo devorou-lhes o discernimento, o recuo para a gravitação estética.
Mas há uma outra característica referente à arte que Agostinho e refere e onde desta vez sou eu que me sinto em consonância. A arte, para Agostinho, conserva a dignidade do mundo e faz com que as coisas sejam: “A obra de arte não pesca no turvo, antes atravessa o formigueiro do mundo para deixar que se faça transparente a ordem fundamental ali subjacente”.
Ao chegar ao atelier, cruzou com uma senhora que ia a sair.
Mondrian recebeu-o e preparou-lhe um chá. Era um homem taciturno e solitário, de óculos. Matta pelo seu lado – alegre e expansivo – deu-se conta de alguma perturbação no mais velho e pediu-lhe que lhe explicasse as razões.
- É por causa da mulher que acabou de sair – disse-lhe Mondrian – pôs-se a dizer, por que há tantas linhas rectas nos seus quadros?
Matta não disse nada. Então perguntou-lhe Mondrian:
- Onde vês tu, essas linhas rectas nos meus quadros?
É Jean-Claude Carrière quem conta esta belíssima história. Para concluir:
«Trata-se de uma história exemplar que podemos aplicar perfeitamente ao cinema. Que é que Fellini não vê nos seus filmes que outros, sim, veem? E Kurosawa? E Bresson? E Kubrick?»
Eu acho que se aplica a todos os campos. O que é que é cego para si mesmo em todos os criadores? Não será essa a parte mais autêntica neles? A que aflora e insiste, como um nó, apesar de invisível para o autor?
A mim sempre me chamaram hermético. Desde que escrevia artigos para os jornais. Nunca entendi porquê. Mas como deixar de ser cego sobre nós mesmos? Como deixar de ser invisíveis ao nosso próprio olhar?
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