Roger Caillois estabelece uma diferença entre o maravilhoso e o fantástico que me agrada. Diz ele que o maravilhoso exclui o mistério, pois sendo tudo possível nesse regime narrativo o enigma não tem aí lugar. Pelo contrário o fantástico ocorre quando algo que não se deveria passar eclode, contra a plausibilidade.
Por um motivo semelhante sou bastante insensível à animação, que me enfastia de morte. O facto daí tudo ser possível mata o drama e, em mim, qualquer interesse. De igual modo permaneço indiferente à onda de filmes inspirada na Marvel ou em heróis da BD. O Spirit, por exemplo, foi das maiores chumbadas que vi na vida; espantosamente gráfico o filme desperta-me o mais acentuado bocejo. Dura cinco segundos a morte em Spirit, depois o corpo cospe-lhe as balas e sara-lhe as cicatrizes, e apanho-me a pensar no Sporting-Marítimo ou como sou (é de sempre) tacanhamente realista: sem conflito, sem obstáculos, sem risco, medo ou superação, enigma ou mistério, sou incapaz de retirar qualquer gosto de um filme. Por muito aparatosos e fantásticos que ache alguns dos filmes do Batman, por exemplo, só os olhos desfrutam, o coração fica-me seco, incapaz de despertar um grama de emoção, à parte de qualquer identificação. Se um drama bem arquitectado, com três, quatro personagens, arranca-me lágrimas, diante do Capitão América choro o dinheiro gasto em tamanha patetice. Nem o Spiderman, o meu favorito na adolescência, me escapa a este sentimento de ser póstumo ao cinema que amei.
No meu prédio, na Coop, bairro contíguo à Sommerschield, havia dois elevadores. Mas um foi roubado por inteiro: o motor, a caixa, os cabos. Desmontado por ladrões e levado peça a peça à vista dos cinco guardas do prédio. Garbosos guerreiros a quem a tsé-tsé diminuiu? Tivessem os académicos imaginação, e já de há muito os antropólogos teriam recolhido os sonhos destes guardiões timoratos.
Imagino o percurso: primeiro pastor, habituado a refugiar-se do leão em casa de caniço com porta de madeira; depois a cheia atira-o para a cidade onde um primo distante se apieda e lhe arranja uma cunha na firma de segurança onde a namorada é secretária. Seguem-se então os rudimentos de treino militar. Em poucos dias fica preparado para a sua vida na cidade. É-lhe confiada uma vivenda, são-lhe apresentados os seus distintos donos, que nunca lhe aprenderão o nome e lhe concedem um banco ou uma cadeira e plástico, de forma a que não fique toda a noite de pé. Ele agradece. Tendo já toda a gente da casa regressado, coloca-se de costas para a faustosa vivenda de que esporadicamente só conhecerá a copa, e sente a noite quente embeber-lhe as omoplatas enquanto lentamente uma côdea de sono lhe tira a barriga de misérias.
Feliz a cidade a quem se pode chamar A Coleccionadora de Sonhos.
Do delicioso livro de Alberto Manguel, No
Bosque do Espelho, comprado em saldo, em Maputo, por três euros, saco este
trecho: “A mitologia pobre do nosso tempo parece ter medo de ir além da
superfície. Desconfiamos da profundidade, rimos da reflexão dilatória. Imagens
de horror passam rapidamente pelas nossas telas, grandes ou pequenas, contudo
não queremos que a sua velocidade seja diminuida por comentários: queremos ver
os olhos de Gloucester arrancados, mas sem ter de assistir ao resto de Rei
Lear. Uma noite, há algum tempo, estava vendo televisão no quarto de um hotel,
zapeando de canal em canal. Talvez por um acaso, cada imagem que ficava na tela
por alguns segundos mostrava alguém sendo morto ou espancado, um rosto
contorcido de agonia, um carro ou um prédio explodindo. De repente, dei-me
conta de que uma das cenas pelas quais eu passara tão rapidamente não pertencia
a uma série de ficção, e sim ao noticiário sobre a Bósnia. Entre outras imagens
que diluíam cumulativamente o horror da violência, eu vira, sem me emocionar,
uma pessoa de verdade sendo atingida por uma bala de verdade.”
O Expresso pára próximo do Mimmos e de imediato retine em mim o apetite de um bife em sangue e uma caneca gelada.
Sento-me na cervejaria e o cansaço borbulha, começa a varar o corpo, a subir pelas pernas. Bebo a caneca em dois tragos e peço outra.
Na mesa da frente uma ruiva magra como um galgo, sofre a fustigação de uma negra, de grande envergadura, que lhe quer mostrar como fala bem a língua dela – o inglês – e lhe despeja à fraca figura frases sobre frases, sem tomar o fôlego. A outra equilibra-se na conversa como pode, visivelmente cilindrada pelo ímpeto da outra. Conheceram-se pela Net e é a primeira vez que se encontram. A moçambicana está decidida a tomar a ruiva como cunhada e martela-a com o extenso rol das qualidades dos irmãos. Numa pressão que encolhe a esgalgada na cadeira. Ao fim de meia-hora a negra faz-lhe um reparo:
- Mas estamos aqui há uma hora e ainda não sei nada de ti.
A outra balbucia qualquer coisa, timidamente, e a negra retoma a palavra:
- Deixa lá, o melhor é irmos para casa que temos de preparar o teu quarto. Vamos, para conheceres os meus irmãos. Mas primeiro deixa-me fazer uma oração pela nossa amizade.
- Uma oração... - pergunta a pobre, desconcertada.
- Uma oração. Nós somos muito religiosos. Não te importas?
- Não... – gagueja a ruiva.
- Óptimo... – mete as mãos em prece e abre a torneira – Oh Lord, agradeço-te por nos teres trazido esta irmã, por nos brindares com a sua amizade como o maná no deserto, e que, oh Lord, ela encontre no nosso lar o seu refúgio e a inspiração para superar as provações que a vida lhe dará, mas, Oh Lord, sê suave e benevolente com ela, e com o meu irmão Jacques que alimenta muitas esperanças nesta amizade, e Oh Lord, não tragas tormentas onde os caminhos são de flores para colher...
E a oração prossegue infindável, por dez, quinze minutos, num entusiasmo que lhe foi avolumando o tom da voz. A ruiva está um feixe de vergonha, encarquilhada num silêncio crescente, tubular, à medida que a amiga percute os seus «oh Lord» nos tímpanos da cidade, e as supostas palavras de gratificação e benignidade se espalham como lava quente sobre os demais murmúrios da cervejaria, no pé ante pé com que se arredonda o ziguezaguear dos empregados.
Quando acaba, salta da cadeira no mesmo lance e arrasta a amiga consigo.
Uma das empregadas está siderada. Uma miúda dos seus vinte anos, com tudo intacto. Uns dedos compridos, como as avenidas de Maputo. Entreolhamo-nos e ela ri-se. Aproxima-se:
- Que bom, ainda haver pessoas assim.
- Bom, isso teríamos de saber mais qualquer coisinha... pode ser muito boa na oração e ser uma grande, grande pecadora...
- Não... o senhor brinca, vê-se que é uma cristã...
- E isso tem uma grande importância?
- Para mim, sim.
- Então qual é a sua igreja...
- A Igreja Universal.
- Ah, uma vez assisti a uma missa das vossas...
- Onde...
- No Cinema África, está a ver ao tempo...
- Então está cá há muito tempo.
- Não, estive cá há dez anos, e agora voltei... para ficar.
- Não me diga que agora vou ver sempre esta cara-linda...
- A cara-linda é comigo? – insisto, surpreso.
- Claro.
- Mas vocês julga que não sei o que é uma ruína?
- Cada idade tem a sua beleza...
Já sabe tudo sobre o comércio de Deus. Hei-de voltar.
«O simples é sempre alguma coisa que difere
por natureza»: já não me lembro de onde saquei este aforismo, que agora pesquei
de um caderno, mas continuo a gostar disto.
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