Simpática a nota do José Mário Silva ao meu livro Ficas-me a Dever-me uma Noite de Arromba que saiu no sábado no Expresso,
mesmo quando discordo dele, sobretudo num momento em que estamos em total dessintonia de sensibilidade e de opinião, mas é normal que
isso aconteça.
Há uma coisa que o José Mário aponta
e onde acerta na mouche, quando fala da urgência da escrita.
O José Mário Silva não podia adivinhar
que estes cinco contos pertencem a um livro maior, que têm o seguinte
preâmbulo:
«Surgiu este livro de forma avulsa,
ao sabor dos dias. Desde que me exercito no espaldar da prosa que o conto foi o
meu território. Até há dois anos atrás, quando me iniciei no romance. Teve este
novo investimento como efeito que este livro de contos, ao contrário de outros
meus, foi sendo escrito sem ordem nem plano, à mercê de impulsos, vagares,
contingências e tempos mortos.
São intervalos fluidos no romance,
despojos de guerra.
Quando era miúdo fiquei muito
impressionado com uma entrevista de Ray Bradbury em que ele contava que
iniciara a sua carreira escrevendo um conto por semana. Ao fim de um ano são 52
contos. Dada a altíssima qualidade que em média se patenteia nos livros de
Bradbury, é espantoso. Secretamente, sempre alimentei esta rivalidade com ele,
onde, evidentemente levo cabazadas de 8 a 2.
Isto para explicar que estes são
contos rápidos, na sua grande maioria escritos de jacto, num dia, e com os
riscos disso.
Aderi pois neste livro à arte do fresco, onde, ao contrário da
pintura, não se pode retocar. Claro que sempre que lhes punha um olho lhes
mudava um adjectivo ou substituía uma forma verbal por outra, mas
estruturalmente foram fixados à primeira.
Com a excepção de a Fala do Hermafrodita, que me deu mais
trabalho.
São contos cuja acção se passa ora
em Moçambique, ora em Portugal, porque há seis anos que alterno entre os dois
territórios.
O resto é consigo meu caro leitor, meu hipócrita, meu irmão.»
O que não sei se o José Mário Silva
também pode adivinhar é que ao fim de uns anos em África a noção de «realismo
convencional» deixa de fazer qualquer sentido e por, isso quando parecemos atrevermo-nos
a todas as descolagens, às vezes estamos desesperadamente e unicamente a ver se
“fotografamos” um naco de uma realidade selvaticamente barroca - onde a erosão, a
fantasmagoria e um delírio quotidiano que tanto roça o maravilhoso como o
absurdo ou a demência se entrelaçam. As pessoas "de fora" não sabem exactamente o que dizem quando
falam, por exemplo, a propósito do romance sul-americano de “realismo mágico”,
pois os seus ingredientes eram afinal o material de que se compunha a mais chã
realidade. Constatei-o aqui.
Mas este
é um texto honesto, que me vai levar a uma futura e prazenteira discussão técnica com o seu autor, e disso também gosto, e aqui o deixo, com um abraço ao José Mário:
«António
Cabrita Companhia das Ilhas, 2012, 46 págs., ¤4,90
Contos
Um traficante transporta na mochila — entre a barra de
haxixe, a máquina fotográfica e latas de atum — dois frascos com fetos de
elefante. Um sagui trepa por Brad Pitt acima, depois de ter talvez roubado um
memorando que trama a existência, até então idílica, de uma fã da estrela
americana (alta dirigente cultural cuja única qualificação é ser amante de
ministro). Um homem “espanca” com um remo as águas do mar, vingando-se do
afogamento da mulher amada, para quem lê repetidamente o “Cântico dos Cânticos”
na frequência de um rádio submerso. Um filme de Visconti traz energia e
perturbação à vida amorosa de um casal. Certa piscina ladrilhada, semelhante a
um quadro de Vasarely, é o palco de uma tragédia absurda, em que a picareta
talvez leve a melhor sobre a “fusca” pronta a disparar. Além da atmosfera
moçambicana, estas cinco histórias de António Cabrita têm em comum uma espécie
de volúpia narrativa, um puro gozo de contar que faz com que os textos muitas
vezes levantem voo, libertos das amarras do realismo, mas também os entrega a
uma deriva que nalguns casos não leva a lado nenhum (‘Morte em Veneza,
Reprise’, por exemplo, cria uma tensão inusitada entre os amantes, sem ser
capaz de a resolver). O que empurra este livrinho é sobretudo a prosa de
Cabrita — ágil, envolvente, minuciosa, deslumbrada com a variedade das coisas
do mundo — e uma certa urgência de fixar as histórias no tempo certo. Se
escrito a posteriori, o texto arrisca-se a sair requentado, “como as respostas
ao fundo da escada”. Por isso, “a sede própria para o conto acontecer” é “esta
página dobrada pelo instante único em que uma pedra parte um vidro e uma
corrente de ar engolfa a casa”.» José Mário Silva
Há uma coisa que o José Mário aponta
e onde acerta na mouche, quando fala da urgência da escrita.
O José Mário Silva não podia adivinhar
que estes cinco contos pertencem a um livro maior, que têm o seguinte
preâmbulo:
«Surgiu este livro de forma avulsa,
ao sabor dos dias. Desde que me exercito no espaldar da prosa que o conto foi o
meu território. Até há dois anos atrás, quando me iniciei no romance. Teve este
novo investimento como efeito que este livro de contos, ao contrário de outros
meus, foi sendo escrito sem ordem nem plano, à mercê de impulsos, vagares,
contingências e tempos mortos.
São intervalos fluidos no romance,
despojos de guerra.
Quando era miúdo fiquei muito
impressionado com uma entrevista de Ray Bradbury em que ele contava que
iniciara a sua carreira escrevendo um conto por semana. Ao fim de um ano são 52
contos. Dada a altíssima qualidade que em média se patenteia nos livros de
Bradbury, é espantoso. Secretamente, sempre alimentei esta rivalidade com ele,
onde, evidentemente levo cabazadas de 8 a 2.
Isto para explicar que estes são
contos rápidos, na sua grande maioria escritos de jacto, num dia, e com os
riscos disso.
Aderi pois neste livro à arte do fresco, onde, ao contrário da
pintura, não se pode retocar. Claro que sempre que lhes punha um olho lhes
mudava um adjectivo ou substituía uma forma verbal por outra, mas
estruturalmente foram fixados à primeira.
Com a excepção de a Fala do Hermafrodita, que me deu mais
trabalho.
São contos cuja acção se passa ora
em Moçambique, ora em Portugal, porque há seis anos que alterno entre os dois
territórios.
O resto é consigo meu caro leitor, meu hipócrita, meu irmão.»
O que não sei se o José Mário Silva
também pode adivinhar é que ao fim de uns anos em África a noção de «realismo
convencional» deixa de fazer qualquer sentido e por, isso quando parecemos atrevermo-nos
a todas as descolagens, às vezes estamos desesperadamente e unicamente a ver se
“fotografamos” um naco de uma realidade selvaticamente barroca - onde a erosão, a
fantasmagoria e um delírio quotidiano que tanto roça o maravilhoso como o
absurdo ou a demência se entrelaçam. As pessoas "de fora" não sabem exactamente o que dizem quando
falam, por exemplo, a propósito do romance sul-americano de “realismo mágico”,
pois os seus ingredientes eram afinal o material de que se compunha a mais chã
realidade. Constatei-o aqui.
Mas este
é um texto honesto, que me vai levar a uma futura e prazenteira discussão técnica com o seu autor, e disso também gosto, e aqui o deixo, com um abraço ao José Mário:
«António
Cabrita Companhia das Ilhas, 2012, 46 págs., ¤4,90
Contos
Contos
Um traficante transporta na mochila — entre a barra de
haxixe, a máquina fotográfica e latas de atum — dois frascos com fetos de
elefante. Um sagui trepa por Brad Pitt acima, depois de ter talvez roubado um
memorando que trama a existência, até então idílica, de uma fã da estrela
americana (alta dirigente cultural cuja única qualificação é ser amante de
ministro). Um homem “espanca” com um remo as águas do mar, vingando-se do
afogamento da mulher amada, para quem lê repetidamente o “Cântico dos Cânticos”
na frequência de um rádio submerso. Um filme de Visconti traz energia e
perturbação à vida amorosa de um casal. Certa piscina ladrilhada, semelhante a
um quadro de Vasarely, é o palco de uma tragédia absurda, em que a picareta
talvez leve a melhor sobre a “fusca” pronta a disparar. Além da atmosfera
moçambicana, estas cinco histórias de António Cabrita têm em comum uma espécie
de volúpia narrativa, um puro gozo de contar que faz com que os textos muitas
vezes levantem voo, libertos das amarras do realismo, mas também os entrega a
uma deriva que nalguns casos não leva a lado nenhum (‘Morte em Veneza,
Reprise’, por exemplo, cria uma tensão inusitada entre os amantes, sem ser
capaz de a resolver). O que empurra este livrinho é sobretudo a prosa de
Cabrita — ágil, envolvente, minuciosa, deslumbrada com a variedade das coisas
do mundo — e uma certa urgência de fixar as histórias no tempo certo. Se
escrito a posteriori, o texto arrisca-se a sair requentado, “como as respostas
ao fundo da escada”. Por isso, “a sede própria para o conto acontecer” é “esta
página dobrada pelo instante único em que uma pedra parte um vidro e uma
corrente de ar engolfa a casa”.» José Mário Silva
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