quarta-feira, 4 de maio de 2011

GONZALO ROJAS, O POETA DOS RELÂMPAGOS


Gonzalo Rojas (1917-2011) é o grande poeta chileno que morreu esta semana. Formou com Nicanor Parra e Enrique Lihn a trilogia dos poetas de primeiro plano que sucederam a Pablo Neruda. A sua poesia, que evoca muito os elementos (a luz, o fogo, o ar, a água), e parece em vários momentos muito inteligível, é por outro lado muito difícil por causa da sua propensão para a elipse e para a intertextualidade. Fez parte do movimento Mandrágora, talvez o mais interessante foco do Surrealismo fora de França, mas tornou-se rapidamente um heterodoxo. Era com certeza um dos grandes poetas vivos do momento na América do Sul. Estas versões pertencem ao volume Metamorfosis de lo mismo, da Visor/Madrid, 2000, que reúne toda a sua produção poética. É natural que ainda venha a trabalhar nestas versões pois fi-las de jacto sem os dicionários à mão, que continuam desaparecidos numa qualquer caixão de cartão, mas a homenagem urgia.



LEIO NA NEBULOSA

Leio na nebulosa a minha sorte quando passam as estrelas
velozes na noite obscura.
Roda: suspensão: patada. Saúde, ó velho tigre
do sol! Há-de esta garrafa ditar-nos a verdade
antes que o vinho escorra flutuando pelo éter? Ou
te queimas ou te deixas cortar. Saúde até à morte,
Dylan Thomas: a estrela do álcool nos ilumine
para ver que apostamos, e perdemos.

E Deus ausente. Corremos demasiado velozes com a tocha
queimada em nossas mãos
libérrimos e errantes por voarmos rumo à origem
– O meu pai jogou sujo
disse Kafka a testemunha.
Mortal, erro mortal
reclamar para ninguém isto de nascer: somos fome.
Mas o fogo está abaixo dos mortos, que crescem ainda.
Somos fome. Ouço vozes e escrevo sobre o vento sem folhas
de minha tábua
de salvação. Aí deixo, tremendo, esta faca.
Não há céu, antes sangue, e unicamente sangue
de mulher onde os nus lêem a sua estrela.
E outra coisa é a morte que nos pára de golpe.
Onde raio estamos? Só então
se dá o beijo: apalpo-te, Eternidade!
Ouço-te, no regaço obscuro, assim que começa o pranto das raízes!


OUTRO OFÍCIO

Algumas árvores são transparentes e sabem falar
vários idiomas à vez, outras algébricas
dialogam com o ar no modo grave
das estrelas, outras
parecem cavalos e relincham,

                                 
no meio de tanta doidice tipos incríveis
desnacidos de mãe, basta-lhes o acorde
da névoa.

De noite pintam o que vêem, geratrizam
e sagram outro espaço com outro sexo distinto
ao do Génesis, cantam
e pintam mais que o ofício
da criação o velho ofício
da discrição

face ao assombro amarram a rede
andrógina na urdidura
de um só corpo
arbóreo e animal ressurrecto
com os dez mil sentidos
que perdemos no parto;

                                        então
somos outro sol.


A CADA DEZ ANOS VOLTO

A cada dez anos volto. Saio das minhas raízes,
da minha meninice, e desloco-me até às últimas
estrelas. Sou do ar
e voltejo com ele em toda a formosura terrestre;
no fogo, no vinho, nas esplêndidas
raparigas. Sou o mesmo
que assobia a sua alegria nas ruas
esfuziantes, o mesmo príncipe e o mesmo prisioneiro.

Coloco-me esta coroa de dez ardentes anos 
- dez rosas já encarquilhadas pelas chamas
de minha cabeça obscura – e o grande público ri
da farsa, e eu rio com ternura,
pois a minha fortuna é essa: queimar-me como o sol,
o meu único rei
                          e meu pai.   



ESCRITO COM L

Muita leitura envelhece a imaginação
do olho, solta todas as abelhas mas mata o zumbido
do invisível, corre, cresce
tentacular, rasteja, subo às ampolas
do vazio, em nome
do conhecimento, uma poalha
de tinta paralisa a figura do sol
que há em nós, e mancha-nos
viciosamente.

Muita leitura envelhece, tanta envilece
e fedemos a velhada, jovens
eram os gregos, nós somos já as borras
como se os papiros dissessem algo estranho ao anjo do ar:
e cai sobre nós a soberba, a eles cabia a inocência,
nós os do mosqueiro - eles eram os sábios.

Muita leitura encanece a imaginação
do olho, solta todas as abelhas mas mata o zumbido
do invisível, acaba
não tanto com o L da famosa lucidez
mas sim com esse outro L
da liberdade,
da loucura
que ilumina o fundo
do lúgubre,
                    lambda
                                 louca,
                                            pirilampo
de antes do fósforo, de muito antes
do latido
do Logos.


OS LETRADOS

Prostituem tudo
com o seu ânimo esmolado em circunlóquios.
Explicam tudo. Monologam
como máquinas lubrificadas em azeite,
e a tudo mancha a sua baba metafísica.

Como gostaria de apanhá-los nos mares do sul
numa noite de inverno colossal, com a cabeça
esculpida no frio, exalando
à solidão do mundo,
sem lua,
sem explicação possível,
a última beata a arder no horror do desamparo.


OUTROS SEMÁFOROS

Outros semáforos para evitar a colisão dos ataúdes:
                                                                  as sandálias
de Sócrates depois da
cicuta, a pálpebra
pintada de Nero, o mamilo
esquerdo de Agripina, o mais erecto de
                                         Marylin, um
dos dedos de Safo, com um brilhante
que encadeia, de Quevedo
o átomo do mais branco dia, uma pétala
de Emily Bronte, o luto
do murmúrio, a
volta.

            Ao que
haverá que juntar algo de aguaceiro
a entremear um pouco de sol para que a carruagem
do mundo não se desequilibre pensando no mal-estar
inconcluído destas
rajadas de realidade que são os cavalos com
os seus arreios
à velocidade do som.


ARCO E TENSÃO
                     para Álvaro Mutis

Em morrendo serei japonês
trajarei de vidro, aura
de satori, entrarei rei
em mim e cumprirei
diáfano os
dez mil anos do homem.

Fechado de uma vez o círculo
translúcido, urtigas
e violetas tecerão a trama
do sossego, gaivotas
via Osaka, pálpebras batendo
ao cuidado de Deus – se houver Deus –

e uma grande borboleta amarela.


O OUTRO

O que em mim dança é o ócio;
                                                  um esticão
da mente e basta
para me pôr em farrapos a luz;
                                                 originar
não é urinar contra as estrelas
ainda que com o consentimento dos grandes girassóis
como disse Rimbaud.
                                   Tudo começa aqui
e é parte.

Pago em goles de sangue
pela respiração.


NUMINOSO

I
O mundo, nomeemo-lo: um exército de diamante,
a uva a uva no seu cacho; e beijamo-lo
soprando o número da origem.
                                                    Não há acaso
antes navegação e número, carácter
e número, rede no abismo das coisas
e número.

II
Vamos sonâmbulos
no ofício cego, cautos e silenciosos, não brilha
o orgulho nestas cordas, não cantamos, não
somos áugures de nada, não abrimos
as vísceras das aves para dizer a sorte de ninguém, néscio
seria que chorássemos.

III
Míseros os errantes, isso são as nossas sílabas: tempo, não encanto, não repetição
pela repetição, que rodopia e rodopia
acima
dos seus espelhos, não
a elegância da névoa, não o suicídio: tempo,
paciência de estrela, tempo e mais tempo.
Daqui
não somos mas somos isto:

                            e Ar e Tempo
clamam santo, santo, santo.

1 comentário: