Volta o Rollo May a intrometer-se na placidez da minha manhã. Não devíamos dormir com livros à cabeceira, era preferível um sorriso ou as pernas longas da Jane Russel. Calhou-me o Rollo, agora há que amassar o pão.
Mas lembra ele esta exortação de Joyce: “Bem-vinda sejas ó vida, vou pela milionésima vez, ao encontro da realidade da experiência, para moldar na forja da minha alma a consciência ainda não criada da minha raça.” A frase é do Retrato do Artista quando Jovem, e é exemplar, porque, lembra o terapeuta, “cada encontro criativo é um facto novo; de cada vez a coragem (teima o gajo, cf. post anterior) deve ser afirmada. O que Kierkegaard diz sobre o amor vale também para a criatividade: cada pessoa deve começar do princípio.”
Ora a mim interessa-me muito esta ideia (aliás verificável) de uma alba consecutiva, pois isso compele-nos para o comprometimento. É de facto como no amor, que só funciona se não abrir uma janela para o ressentimento (fazendo ressaltar as esquírolas do passado) e tramar antes o novo, o qual – por sua vez - não se confunde necessariamente com a novidade mas tem de ser uma forma renovada de olhar as coisas.
E só sabemos que estamos engatados (a pedalar em pleno comprometimento) quando se deu essa deslocação, tal metanóia. A raça é o portador dessa nova sensibilidade, de um comprometimento em estar no ponto da porosidade, em estar-aí, onde o diálogo com a realidade não submerge, inquinado pela sedição do (nosso) passado. Já da raça falava Pound, «o poeta é a antena da raça», mas tirem os cavalinhos da chuva os que queiram ver nisso disparates de pele.
O que implica um trabalho incessante, uma vigília (reparem que Joyce recorda que a consciência não nos foi dada como papa-feita no Monte Sinai), ter a ousadia de experimentar e de falhar, do mesmíssimo modo que temos de aceitar o encontro com a realidade da experiência, invariavelmente em devir. Não há como fugir: a experiência devassa-nos.
Espanta se tenho dificuldade em demorar-me nos poetas que são como aquele actor que ataca sempre as personagens do mesmo modo: de risca ao meio.
Quando em miúdo me deu para “ungir o verbo” com um ar de gato esfolado por dentro, o meu pai ficou apreensivo. Chamou-me à parte e perguntou-me se não era preferível “fazer-me homem”, isto é, começar a desassossegar raparigas e pomares.
Depois de jantar, no intuito de esvaziar a minha pretensão, propôs-se escrever um poema. Passado meia hora entregou-me um soneto de factura técnica irrepreensível que tinha Lisboa como tema. Eu é que, obstinado por uma cegueira entranhada antes de tempo, intui aí que a poesia não tinha nada a ver com o versejar e que o endereço prévio, a formatação do tema, a inquinava.
Escrever sobre, intuía eu, reduz a linguagem ao papel do carteiro, a uma mediação neutra.
O meu pai, em sintonia com tantos poetas de hoje, concebia o poema como uma paisagem mensurável, com tique-taque. Ele confundia a qualidade do poema com o seu escanção.
Ademais, procurar regular sinceridade estética e fiabilidade psicológica, numa síntona veracidade vernacular, não passa de uma má influência do cinema de Hollywood, que é «condutivista» e liso: i.é, o ideal para um estrato etário baixo.
Quando os leio tiro-lhes o chapéu - o meu chapéu de antropófago, bem entendido! – para usar uma tirada com graça, de Aimé Césaire.
A poesia está noutro lado. Onde está, não sei. Só sei quando a encontro.
desse lado...
ResponderEliminarnessa direção...
nessa via, toda vida, sem olhar pra trás...
beijos!