quinta-feira, 5 de maio de 2011

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR 4

a lógica é para o escritor como o pé chato para o maratonista: um empecilho
Numa mudança de casa há sempre danos, uma peça de mobília que resolve dar de si, copos que não aguentam a notícia em que foram embrulhados, uma caixa de cds que desaparece, ou livros que aparecem modificados, sem se imaginar como nem porquê.
Foi o caso dum livro extraordinário que me acompanha há 15 anos, a recolha de Kostelanetz, Conversations avec Cage. A capa está esfarelada, as lombadas crivaram-se de bolor e por dentro o livro apresenta-se encarquilhado e manchado, como se, intimamente, o livro sonhasse perfazer as 20 mil léguas submarinas. Nunca tinha visto, o caso dum livro que deseja mudar de identidade, e só por isso este dano já me dá uma história.
Mas ao tirá-lo da caixa e ao ver o seu estado, a que já só faltam escamas (as guelras dum livro são como se sabe invisíveis), ganhei ganas de o reler com a sensação de que a nossa intimidade está por um fio. Saio de casa, vou ao tasco mais próximo, peço uma bebida e manuseio-o com muito cuidado - algumas páginas estão perigosamente coladas umas às outras.
Sobrevoo o belo trocadilho com que John Cage brindou um jornalista do Midwest que lhe escrevera a pedir para ele definir a sua vida e obra numa palavra, e a quem Cage, partindo do seu nome, aconselha: «Saiam da gaiola, pouco importa aquela onde estejam», e chego ao capítulo Autobiográfico, onde dou de chofre com a observação de Cage sobre a sua mãe, que sempre me deixou perplexo: «A minha mãe casou-se duas vezes antes de desposar o meu pai, mas nunca se referiu a isso, a não ser já próximo da morte. Ela não conseguia lembrar-se do nome do primeiro marido.(pág. 29, sublinhado meu)».
Esta passagem mergulha-me sempre em reflexões sobre os alçapões, os labirintos da memória. Psicanaliticamente é fácil e até grosseiro dizer que só recordamos o que queremos e censuramos o que nos desagrada. Isto é um estereótipo secular.
O facto é que as histórias felizes não imprimem enquanto o sulco das mágoas é muito mais duradouro. Não interessa quanto tempo durou esse primeiro casamento, é mais pertinente interrogar se há intensidades sem um nome que as transporte? Se tivesse sido uma relação traumática, que tivesse deixado uma cicatriz vertical na psique da mãe de Cage, os anos trariam aos seus lábios o nome do agressor, porque o tempo age como uma momentanea amnésia paliativa e cauteriza a dor, desloca-a, e leva-nos a perdoar, ainda que a não esquecer – e ao mal, até por defesa, nós designamo-lo. Nós nomeamos a figura do mal como uma prova de superação, dum obstáculo ultrapassado. Nenhum judeu de Auschewitz esqueceu o nome dos seus carrascos.
Mas como falar da felicidade? A felicidade é como o tempo: podemos experimentá-la mas falar dela é um contra-senso, e uma felicidade demasiado consciente, meta-relacional, é o primeiro sinal de um défice.   
O que me deixa desconcertado nesta curiosa amnésia da mãe do músico é a hipótese da senhora ter sido tão tremendamente feliz no seu casamento que, face ao que se sucedeu, lhe fosse insuportável atribuir um nome ao que, por qualquer motivo, perdera para sempre.
É uma hipótese nada descartável ainda que pareça rebuscada e pouco lógica – mas, aqui é que está o busílis, o que o escritor persegue não é a lógica mas as anfractuosidades do sentido, o seu esplendor indiciário.

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