quinta-feira, 5 de maio de 2011

MÍSTICA PARA DEBUTANTES

MÍSTICA PARA DEBUTANTES
                                         
Pedrada de súbito opalescente – o extrínseco.
Malha e malha, pega na manhã e malha
no teu corpo a luz que te devora.

Há-de ter sobrado alguma polpa à noite
que te escavava a confiança, os anéis
do medo arruma-os ao fundo da gaveta

da cristaleira - que morram sem brilho.
Apela à tua sombra, antes um coração
escaqueirado que um puro, que só leia

a tua vida de sonâmbulo. E malha a manhã
no teu corpo, até que transborde e a tarde
diagnostique na luz os nervos

em franja, e o sangue
(dezassete latidos por segundo)
volte a iluminar-te o caminho.

DA INACTUALIDADE DAS ILHAS

                                        para o Carlos, no Pico
1
Até onde me reflicto: uma ilha sem praia
de acesso, com um palmar esfiapado
pela bruma, desprovida de sonar.
anel esquecido em caixa de fósforos,
sem dedo onde encaixar qualquer ideia
de repouso. Até onde me destrinço:
uma ilha assobiada pelo medo, os mil pés
fincados no sol e a cabeça na água,
metade fé metade mato, em com-
bate de cobra e coruja. Até
onde enxergo: breu,
e no gume da palavra,
persistente, o sangue,
que a vida não sai barato.

2
Na infância, a Noite era uma
senhora muito encarquilhada
que varria a luz até
adormecer de cansaço.
depois, a senhora rejuvenesceu
e o seu sexo escandia
os dragões matutinos.
Hoje a Noite é um pequeno
ladrão que adormece à espera
de que a ocasião fique vaga,
ilha onde a minha ilusão
abre o seu guarda-chuva
e luze, intérmita, no escuro
...........................................

3
Quando eu morri a minha alma foi
devolvida, como a maçã
que liberta do pedúnculo suspende
naquele hiato ideia de terra ou de céu.
Quando morri a palavra abriu
o postigo e a sua escuridão obsolescente
floresceu nos tímpanos de um azul
marinho ondulante como a luz.
Quando morri uma seda fria
cobriu os meus ossos, catapultados
de súbito como varetas de um guarda-
chuva aberto pela culminação
da alegria. Quando morri
O nome Tu desertaste comigo.

4
Anima-te o medo mais profundo de órfão
desvairado pelo peso da terra divisível.
À custa da linguagem que flutua sobre
a lixeira do teu nome, como nuvem de altares
barrocos, intuis ser um piano à chuva,
palco para três ratoneiros, enquanto
as formigas entre si repartem
as mechas da noite estrelada.
Só quando a linguagem flutua sobre
o velcro da dúvida – discreto coração
albino – é que percebes a radiação fóssil
e a matéria evanescente de Deus,
que se afasta para que tu sejas
luminescente vocação inacabada.


CISMAS EM CALIBAN
montagem sobre frases furtadas a Irene, ou o Contrato Social 
                                                                        para a Maria Velho da Costa

1
Em que guarita arde vígil
a palavra –
                     na noite
que lhe foi imposta?

Deus:
          dorme-lhe bem
sobre este estuário podre. 

Casco de fuligem invertido
- o dia.

2
Mais habitadas pelos olhos,
aladas
            pelos golpes que relançam,
ficam as mãos translúcidas –

como antes de entaipadas.

Enruga a pele porque os ossos -
          como a glicínia que é só haste
          ensarilhada em si mesma -
                               desirmanam
em estalidos vãos?

3
Dobra o seu nome na língua:
limoeiro depredado de
                    os-
             sos e vísceras.
             Doba
o seu nome na ave:

gran secreto es el morir.

4
Sobre os quartos traseiros, de peida
desencaixada
                        - que desvario,
um elfo implume –
                                   pensou,
encaroçar,
       não estar para ninguém.

Excepto para as crianças de leite
e as corolas desconformes.

Sobre os quartos traseiros, sob
os calores
                  e as rajadas nocturnas.
                  pensou,
o hausto morno deste outono
esperta como um alho.

5
Um jardim de cascalho penteado
e de pedregulhos com musgo:
inesgotável
                     crisálida
                                     crónica…

Fala que eu próprio não entendo
e que dirigia a Caliban,
certo como estou de que ele
me desflorou de boa mente.

6
Não eram casas, eram nesgas
de outros espaços que logo
se desapercebiam. Era a morte
assim, prolífica de lugares,

a vigília súbita - indício do pavor
de estar a regressar
a uma diversidade
do ter sido, do vir a ser?

Estuários, ravinas, moradas,
à vez reconhecidos e ignotos
como os de um anjo?

Sonham os cegos ou vêem
noutras partes?

Não há acudimento.

7
E pronto:

os animais que imitam
a fala que é a alma

homografam
o desconcerto.

8
Quem enxota um pombo
                    - esses ratos com asas -
se não carece de salvaguardar
a semente miúda, o trigo e o joio?

Bárbaros, cisma Caliban,
atirando migalhas sem amor
nenhum aos pássaros,
já alienígenas de fartura.

O gozo que me dá matá-los
a pente-fino,
                     fazê-los à vida
pelo princípio da indeterminação.

Uma nuvem, deita-se
ao comprido no estuário,
          não gosto, cisma Caliban,
é uma coisa alarmante
aquele edredão encardido
sobre o rio, as suspensões da ponte,
cíclame sem pés,
suspenso de nada,
                                roxo e frio.

9
Pisca um avião a adornar
para a descida na Portela.
Amar um avião, amar
como um cão a memória
rasa das cidades.

Ao longe, no relvado,
debaixo dos verdes cinzas das oliveiras,
duas gaivotas despedaçam
um pombo ainda vivo.

Um dia de mortes nunca vem só.

10
Matéria circunvoluta, estriada:
                             o desejo
é o que eu trazia comigo,
carne na carne,
                          a gangrena de nações.
O desejo, um deus que a si mesmo se come
e não poda sem dano e estropia
o jasmineiro e a glicínia e até
o hibisco rosa,
                          em plena floração.

11
Se não é a luz inconsútil
pode a palavra sê-lo?
            Nada mais viscoso
            que a astrofísica
a fazer exercícios em argolas
de assíntona compaixão.

12
Deixa a tua vida na entrada
dos actores,
                    como um intervalo
entre actos.
                    De cinco em cinco
anos também o Etna e
os Capelinhos choram
                    fogo e castanhas
incomestíveis.


13
Gente irremissa, até no meio dos ciclones,
preocupada com uma malha caída,
um cabelo na sopa.

O tecto do mundo
não é o Himalaia mas o coração
que espera,
a espera ainda sem folga,
a ungulada asa preta do morcego.

Não ponha música, oiça-me
a música faz-me doer os olhos.

Os mortos também devem ter saudades, entende?

14
Não deixes proliferar
as tuas vozes,
que a poliglossia nos ovos
seque o vento na árvore.

15
Todos ali numa comunhão
de espíritos, ninas, elfos,
bodes peludos e outras carnações.

Mas não só no jogo de luzes
da noite que há-de vir -
                                para te comer.

4 comentários:

  1. Com um abraço daqui do Pico. Saudades da partilha. Carlos

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  2. Grande Antonio Cabrita! Daqui do sul do Brasil admirando a riqueza da língua portuguesa em terras d'Africa!

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  3. P.S. Falava de "DA INACTUALIDADE DAS ILHAS", o único que efetivamente li. Leio devagar.

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