quinta-feira, 26 de maio de 2011

O LANÇAMENTO EM MAPUTO DE «NÃO SE EMENDA, A CHUVA»


É amanhã o lançamento em Maputo do meu livro Não se Emenda, a Chuva, dois meses depois de me terem sido enviadas pelo correio duas remessas que se extraviaram – desviadas pelos próprios serviços dos Correios para serem vendidas na rua.
Tenho finalmente um exemplar, trazido amigavelmente pelo romancista João Paulo Borges Coelho, que foi a Portugal e teve a simpatia de mo trazer pessoalmente.
Nem sei o que sinto. Já não sinto nada, como o amante que recebe pela primeira vez a amante mais desejada na tarde da notícia da morte do pai, do irmã e duma filha, num sinistro na auto-estrada… ciente de tudo ser tarde demais. Os livros, como os relacionamentos humanos, também têm um timing para a celebração, senão ardem como capim anónimo no pasto da memória.
Tinha dezassete anos quando publiquei o meu primeiro livro, que vendia no metropolitano em Lisboa, alinhados sobre um pano vermelho, no chão, enquanto eu distribuía poemas tirados numa velha stencil. Assim consegui pagar a edição, em três meses de vendas diárias.
Um livro patético duma ingenuidade picotada em gritos que me ensurdeciam. Puro heavy-metal. E orgulhoso da fanfarronada em copos e drogas leves, numa retórica pesada que eu julgava beat. Em 1977, era Lisboa uma festa. E aí conheci o Levi Condinho, um poeta mais velho, de genuína cepa, que me acompanhava aos concertos de rock mas me encharcava de jazz e Berio e poesia japonesa e Herberto e Ruy Belo, e Vicente Aleixandre e Murilo Mendes e os manos Campos. O Levi, com o seu bigode à Nietzsche e o cabelinho à Peter Handke foi o meu primeiro mestre e não tinha ponta de cálculo, inocente como a flor dos náufragos que ele sonhava encontrar ao fundo de cada copo de vinho tinto.
Será um dos ausentes de peso amanhã, que gostaria de ver no lugar das cadeiras vazias. A seguir o poeta Al Berto de quem fui muito amigo e um dos seus autores, quando regressou de Bruxelas e delapidou o que lhe restava da herança numa dúzia de livros invendáveis. Depois o José Amaro Dionísio, um amigo do peito, e a sua Fátima Maldonado. O Rogério de Carvalho, encenador incansável, uma espécie de pai perpétuo, que me emprestou os primeiros livros contra o depósito do meu BI, e com quem eu hoje, entre bacalhauzadas, discuto Badiou pelas tascas de Maputo, vai estar felizmente presente, num daqueles casos da vida que reaproxima os extraviados. Mas o Guilherme Ismael não vai estar, meu irmão de adopção, moçambicano, com quem reparti tonéis de mau vinho e esbocei trinta projectos de filme, porque esse já lá está a acotovelar-se entre tronos e dominações, no ingrato céu do ataúde. Nem o Assis Pacheco, também já consumido pelo fogo preso da vida, nem o Teófilo e o Fernando Santos, a Lourdes e a São, bons amigos, nem o meu birrento “discípulo” Francisco Ferreira, que nunca se atreveu a vir a Maputo. Nem a minha irmã João, nem as Suzanas, a Sousa Dias e a Gonçalves, nem a Alice, a minha primeira namorada oficial, nem as minhas filhas mais velhas, Maria e Carolina, nem a doida da Marina, a quem amei conturbadamente. Vai ser uma plateia de fantasmas. Nem o Carlos vem do Pico, nem o doido do Manuel da Silva Ramos da Covilhã. Fica sobretudo esta triste sensação de que estamos a regatear em torno de um presunto já demasiado fumado sem que cheguem os talheres para o devido desfrute.
Vou apresentar também, em dez minutos, dois livros meus de ficção que a Minerva teve a gentileza de importar, o meu primeiro, Cegueira de Rios, editado pela Relógio d’Água em 1995 e as Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, editado pela Teorema, em 2008, um livro de 300 páginas que me levou 3 anos de escrita e cuja história conto a seguir.
A Cegueira… surgiu-me numa altura em que escrevia, por encomenda, muitos guiões para cinema, alguns que assinei e outros como negro, e em que comecei a dar conta do brutal desfasamento que às vezes havia entre os guiões e o produto final, que conseguia ser ainda pior que os guiões. Ao fim de cinco burradas, um tipo tem que fazer alguma coisa por si. Eu escrevi esse livro de contos. Tem dois contos que me agradam muito: O Milagre de Sevilha, uma variante sobre o Don Juan, cujas aventuras são contadas pelo seu motorista, sendo a novidade que o protagonista é cego; e A Reunião de Condóminos, que se debruça sobre um muito especial Clube de Procrastinados.   
Sobre as Tormentas… livro de que gosto muito, dezasseis contos num painel variado de estilos e formas, e que é, simplificando, uma autobiografia inventada, no sentido em que o exercício foi inventar o que aconteceria se em cada momento em vez de ter virado na rua à esquerda, o tivesse feito para a direita (o livro teve direito a quatro críticas laudatórias e ao silêncio do Expresso, jornal para que trabalhei 18 anos) não tenho mais a dizer do que aquilo que escrevi no meu diário e que reproduzo:
«Baudelaire, no fim da sua vida, fez a contabilidade do que a sua pena lhe havia garantido. Chegou a um total de 15 892 francos e 60 cêntimos – e o amigo que foi testemunha desta lúgubre contabilidade comenta: ‘Assim, este grande poeta, este pensador terrível e delicado, este artista perfeito, tinha ganho, em vinte e seis anos de labor, à volta de 1 franco e 70 cêntimos por dia.’
Assim me senti eu, um artista comprovadamente imperfeito, um pensador mais beato, menos mordaz, mas igualmente dedicado, quando telefonei para a contabilidade da Leya, dois anos depois de ser distribuído o meu último livro de ficção, Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo, um book de 300 páginas que levei três anos a apurar com lima & formão, ter chegado ao mercado, e sobre a qual uma impassível voz feminina, do outro lado do bocal, de boa-fé, me informa que tinha a receber, um total de 280 euros, referentes a 70 livros vendidos.
Eu estava à espera de ter vendido seiscentos, setecentos livros, já que o dito, lançado no momento em que o editor trespassou a Teorema à Leya, fora lançado às feras. Apesar de ter tido direito a 4 textos ditirâmbicos nos jornais, e a um breve apontamento de Jorge Listopad, que me emocionou pela cumplicidade, justeza e sintonia, eu sabia que o momento editorial era difícil e que o meu afastamento tinha um preço. Mas não esperava por números tão ridículos (não quero entrar na paranóia de dizer que os dados estavam viciados, ainda que tal pareça), pois sobre o meu livro anterior, As Cinzas de Maria Callas, tinham-me sido pagos os direitos de 1500 livros vendidos.
Na verdade, o malogro do livro começou no próprio lançamento, a que o editor teve a delicadeza de faltar. Eu chegava de 10 000 km, doente, absolutamente estoirado, pois para poder viajar tive de escrever um argumento de uma longa-metragem, que me fora encomendado, numa semana, o que me levou a não dormir praticamente. Arrastei-me como um zombie pelo encontro de Literatura de Viagens, em Matosinhos, sem energia, absolutamente incapaz de estar com os outros e até com medo disso, de tão exaurido, e quando chegou a minha vez de botar faladura tive uma quebra de tensão e ia adormecendo em cima da mesa. O que foi notado. No fecho dessa edição do Encontro, foi-me proporcionado um lançamento paralelo com uma vetusta ilustre da terra que festejava os seus oitenta anos dando a lume um tomo sobre a sua rua, os vizinhos, a genealogia dos seus gatos, drogarias e mercearias e do bairro, e a sala estava à cunha de fungosas anciãs. Praticamente nenhum outro escritor, amigo ou não, se deslocou à sala para ouvir o sonâmbulo. Eu estava sozinho, uma tartaruga que um dia se julgara bukovski com as setenta velhinhas ululantes. O editor, nem tivera a delicadeza de me informar que iria para Lisboa mais cedo. Soube-o diante da sua cadeira vazia. Contei então à plateia a história de um editor viúvo e meão, de bigode cor de barata velha, mas incansável no dar ao dedo e no desfiar de histórias de vígaros e de pequenas safadezas, e que procurava casamento com uma viúva do norte. É sabido que as velhinhas viúvas, se as transporta a saudade de ser novas, não são amenas, e como não já nada têm a perder, adoram vígaros. Acabei por recolher trinta e oito cartões de visita para entregar ao editor. Era a única coisa que podia fazer por ele, posto que ele por mim se havia baldado, à socapa, com a arte dos exaustores. Quando nos encontrámos em Lisboa, ele foi tão frio, tão abjecto, que nem lhe passei aqueles passaportes para esfregar a barata velha do bigode nas badanas das pussycats dolls de Matosinhos. E acabou assim a minha glória de escritor. Confirmada pelos 280 pauzitos recebidos dois anos depois.
Não conto como o editor me abordou à minha chegada a Matosinhos, tinha poisado as malas no quarto há cinco minutos, sobre a necessidade imperiosa de que o livro fosse um êxito para poder continuar a editar-me, o que me soou logo a extemporâneo e a ameaça, sabendo de antemão que ele nunca mexera uma palha por livro nenhum; nem conto o episódio de, na sequência de ter sido informado sobre o êxito rotundo do livro, ter pedido exemplares e me ter prontificado a ir buscá-los à editora, tendo obtido a resposta de que precisamente nessa altura entrariam de férias, quando a secretária de direcção, numa estrutura de 3 elementos, já estivera de férias (dito e reafirmado pelo substituto, com quem falei três vezes ao telefone) durante as duas primeiras semanas da minha permanência em Portugal. Não conto, nem repito: não quero entrar em paranóias.
Portanto, cinco anos depois de ter saído de Portugal para mergulhar noutras experiências e escrever, estava a saldos com uma falência baudelariana e sem editor». E fica tudo dito.
E amanhã vamos ver o que ficará dito. Uma coisa está decidida. Vou abrir a coisa lendo A Louca da Casa.

11 comentários:

  1. nem eu vou lá estar... eu, a irmã da Lourdes e da São e cunhada do Guilerme Ismael... que tive um trabalhão para ler o teu post inteirinho;)
    Preferia saber da tua apoquentada vida aos poucos!
    Muita sorte é o que te desejo!

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  2. Estou aí, companheiro, procura bem no canto escuro da sala.

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  3. Não vou estar mas gostava. Tenho saudades tuas.

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  4. És um sacaninha. Não se convida ninguém de véspera. Mas afianço-te, que, amanhã mesmo, à hora do lançamento vou estar com a São a beber um copo contigo. Abração !!!

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  5. O título é realmente maravilhoso. Fiquei louca para ler o livro. Um título seco e poético ao mesmo tempo. Inspirador.
    Parabéns :)

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  6. Não se emenda?
    pois...

    mas nós também vamos estar aí.
    beijinho

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  7. Um abraço, António! E vou ler como? Vende-se em alguma esquina de Lx, num bar, na praça das verduras? É que não dou notícia em livrarias... Podias era mandar-me, meu grande malandro!

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  8. bom, além do Listopad, alguém leu o livro, enfim...
    Um abraço forteantigo e perpétuo

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  9. pode-se comprar no metro ou o quê?
    pergunta a outra face do meu corpo utópico
    ;)

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  10. eu próprio não sei onde se compra. suponho que na Poesia Incompleta,em Lx, terão, como na Leitura do Porto, nestas de certeza

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  11. obrigada senhor :)
    estou aqui mas tenho vergonha
    http://distopicamente.wordpress.com/
    a si, apeteceu-me dizer-lho, se calhar por causa da "topia", sufixo insignificativo
    o sr. pode apagar isto depois de ler, sff?

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