Há coisas que escusávamos de saber, par exemple, que Malebranche chamou à imaginação «a louca da casa».
Que lhe tenha vindo a ser cortado rente, à medida que nos esquecemos dele.
Não sei que louca lambuzou a orelha do Kafka quando ele escreveu: «(em alemão) o nível médio da linguagem não é senão cinza», mas eu quero essa louca para mim.
Vencido o mar, o fuste onde a codorniz, destumultuada de si, assobia para o lado, antes de retomar voo numa direcção sem itinerário, será a língua da louca?
Os dedos de salsugem da louca da casa acordam-me a sede lancinante do bêbado mendigo:
‘que culpa tenho eu, desculpa-se a louca da casa, se a partir dum determinado momento
as palavras migram para dentro das letras, mais céleres que o olhar irisado de sangue nos cromados?’
A linha divisória, que linha divisória me pode separar da louca da casa, sem destruir aí
uma assimetria essencial, a cólera que dá flor?
Uma língua sem afeição é um espelho furado, um grito mudo. Que língua aviltada, espectral, vigia a louca da casa? Aquela que sela o abismo. Porque o abismo da louca, pelo contrário, não tem fim.
A língua que espera pelo seu esfregão acabará por engolir em seco a sua própria voz.
Onde se desencadeia o desprendimento da língua de areia? Na chuva, primeiro dos abismos sem fundo.
Deixem-me sentar na língua da louca, a sua humidade lubrifica um ritmo que arboresce e não me cansa.
Felizes os dias em que os académicos iam às exposições do Matisse com uma ponta e mola
no bolso. Dias da louca da casa.
Se quer dizer olhar, diz litoral; nunca diz desejo, menciona por alto uma melancolia paranóica; nunca chama ao sono sono, diz insosso. E junta numa panela os ossos do ofício, para fazer uma gelatina a que chama O Osso Buco de Deus.
A louca da casa, deixou de correr atrás da palavra exacta, que dispara as sinapses, e agora almeja a palavra que possa deter o fluxo.
Nada me descasca do meu corpo, pelo menos não já – confia-me a dona da casa.
Faço deslizar uma aresta fina do BI entre as teclas do laptop e alarmo-me ao ver como repontam por baixo os tufos de cabelo. ‘Todo o meu cabelo se verte por sob as teclas, lastimo eu, é aqui que o deixo – de ano para ano um jardim mais glabro!’. Ela encolhe os ombros e escarnece: ‘…não quer apanhar mais sol!’.
Ter sotaque, censura-me ela, é como andar sempre na praia de meias calçadas…- e é quase um bom argumento, não conhecesse eu os buracos que as minhas unhas produzem nas peúgas.
A louca, se lhe perguntam que quer, responde de imediato, quero cegonha no pão. O que me cansa, as minhas redes de borboletas não chegam lá.
Vem a louca da casa com duas cabeças de galinha a despontar-lhe dos sovacos e pede-me dá-me um moeda para eu a dobrar na virilha e mostra-me a sua língua momentaneamente alugada – ‘assegurei um aumento anual condizente com a inflação’, diz-me.
Suspeito que começo a ser o pano roto para a louca da casa.
O ar ao contrário de ti, censura-me, não fala pelos cotovelos. E eclode em mim uma fúria – sabe lá ela como eu ardo!
Às vezes tenho dela um terror animal, como desta coisinha durinha de roer, do Holderlin:
“E não é um mal se algo/Leva à perdição e do discurso/ A viva voz acaba por se velar!”.
Na minha adolescência havia um craque do futebol chamado Victor Baptista, um pintas que acabou no presídio. Era um ponta-de-lança genial, acutilante como o canino da chita. Nunca o vi de língua de fora, ou só uma vez: no jogo em que perdeu o brinco da orelha e o ataque do Benfica parou durante dez minutos, para a chita pôr o rabo no ar, desencontrado como um limpa-brisas, desmemoriado. Aí vi, comprida e áspera, a língua da louca.
Hoje deitei-me com a louca da casa. Perguntou-me, já depenaste algum anjo. Respondi-lhe à queima-roupa, sempre que me vejo ao espelho. E ela indagou, em que nesga da porta.
Está sentada. À janela. Intermitentemente, num relance, faz panorâmicas pela rua. Debalde.
Espera. Que espera? Uma carta que traga agarrada a si a pele da noite em que nasceu, interminável e impossível de ser interceptada.
Amo a louca da casa, nem me atrevo a dizer-lhe isso. Mas ela espia-me. Já tem os gravetos guardados para me deitar em cima e o fósforo está escondido debaixo da língua.
Que prazer de texto!
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