E, afinal, o que aconteceu durante estes três tormentosos dias de mudança, na qual foi furtada a caixa com todos os filmes das minhas filhas? O meu clone, que está a pau, à porta do quarto de William e Kate, ficou de me enviar relatório amanhã.
E, entretanto, a morte, enfadada pela perícia do adversário, puxou a carta da manga e deu poker de ases. A batota, foi a única forma que encontrou para iludir Aquele que sabia tudo sobre os cegos e sobre as suas manobras secretas para dominar o mundo. Falo da influência das forças invisíveis sobre o mundo e do homem como hospedeiro de todos os vírus que os “invisuais” engendram.
Ernesto Sabato tinha denunciado tudo, exposto o mecanismo.
Quem lê a novela Túnel, estremece ao ver a transparência com que Sabato expõe a mente humana, numa radiografia que mostra bem a fragilidade congénita do homem, a facilidade com que o bem e o mal se entronizam e ramificam na planta dos pés, como se fossem dois patins vivos. Igual, em precisão e susto, só em Cosmos, de Gombrowicz. E quando o leitor obstinado passa para Heróis e Túmulos e lê o famoso Relatório dos Cegos, que inclusive chegou a ter edição autónoma, é estremecido por muitas horas de gravitação porque não se é o mesmo homem, antes e depois de ler o livro. É um dos mais poderosos ciclones interiores que a literatura nos legou, duma nocturnidade que prevalece sobre a coragem do seu leitor. Eu li os dois livros seguidos e faltou-me a força moral para prosseguir de imediato com Abaddón el exterminador, considerada em França como a melhor novela estrangeira publicada em 1976.
Hei-de lê-lo agora, precedido da releitura dos outros dois, pois é uma hidrografia comum, com personagens, ambiente e pulsão afins.
Sabato morreu depois de cem anos de vigília. Aos 34 anos abandonou uma carreira de sucesso como físico-químico (especializado em radiações atómicas) no Laboratório Curie, em Paris, para se dedicar unicamente à literatura, que compreendia «como uma dolorosa tentativa de chegar ao fundo do mistério», e ao seu comprometimento com o testemunho, contra todas as formas de aniquilação. Produziu três livros de ficção (unicamente três, mas absolutamente necessários), cinco ou seis livros de ensaios de que destacaria Homens e Engrenagens e O Escritor e os Seus Fantasmas, e presidiu ainda a uma comissão para avaliar os crimes de guerra da ditadura argentina.
Foi um homem absolutamente anti-mundano. Na última página da edição de Homens e Engrenagens escrevi duas frases. A primeira é claramente inspirada em Sabato e projecta um horror que hoje é uma realidade africana: «os pobres como armazéns de órgãos»; a segunda tem uma ambivalência que é a do leitor deste extraordinário romancista: «a alegria queimava no seu rosto».
Comece por Heróis e Túmulos e deixe-se queimar - em vez de um flato de entretenimento, uma oxidação que alimenta!
Nada como um túnel de palavras para a gente atravessar. Que pena que ele se fechou.
ResponderEliminarbjs.