quarta-feira, 25 de maio de 2011

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR 6/ REVISÃO FINAL DE A LOUCA DA CASA

guan zeju

Há coisas que escusávamos de saber, par exemple, que Malebranche chamou à imaginação «a louca da casa».

Não sei que louca lambuzou a orelha do Kafka quando ele escreveu: «o nível médio da linguagem não é senão cinza», mas eu quero essa louca para mim.

Vencido o mar, o fuste onde a codorniz, enfim destumultuada, assobia para o lado, antes de retomar voo numa direcção sem itinerário, será a língua da louca?

Os dedos de salsugem da louca da casa acordam-me a sede lancinante do bêbado mendigo: ‘que culpa tenho eu, escusa-se ela, se a partir dum determinado momento migram as palavras para dentro das letras, mais velozes que o sangue que cicatriza os cromados?’

A linha divisória, que linha divisória me pode separar da louca da casa, sem destruir aí uma assimetria essencial, a cólera que dá flor?

Uma língua sem afeição é um espelho carbonizado, um grito mudo. Que língua aviltada, espectral, vigia a louca da casa? Aquela que sela o abismo. Porque o abismo da louca, pelo contrário, abre-se sem fim.

A língua que espera pelo seu esfregão acabará por ser engolida pela Maçã de Adão. Onde se desencadeia o desprendimento da língua de areia? Na chuva, primeiro dos abismos sem fundo.

Deixem-me sentar na língua da louca, a sua humidade lubrifica um ritmo que arboresce e nunca cansa o vento.

Felizes os dias em que os académicos iam às exposições do Matisse com uma ponta e mola no bolso. Dias da louca da casa.

Se quer dizer olhar, diz litoral; nunca diz desejo, menciona por alto uma melancolia paranóica; nunca chama ao sono sono, profere: que insosso. E junta numa panela os ossos do ofício, para confeccionar uma gelatina a que chama O Osso-Buco de Deus.

A louca da casa, deixou de correr atrás da palavra exacta, que dispara as sinapses, e agora almeja a palavra que possa deter o fluxo.

Nada me descasca do meu corpo, pelo menos não já – confia-me a louca da casa.

Faço deslizar uma fina aresta do BI entre as teclas do laptop e alarmo-me: no seu rasto repontam tufos de cabelo. ‘Todo o meu cabelo se verte por sob as teclas, lastimo eu, é aqui que o deixo – de ano para ano um jardim mais glabro!’. Ela encolhe os ombros e escarnece: ‘…se não quer apanhar mais sol!’.

Ter sotaque, censura-me ela, é como andar na praia de meias calçadas…- e é quase um bom argumento, não conhecesse eu os dotes perfuradores das minhas unhas nas peúgas.

A louca, se lhe perguntam que quer, responde de imediato, quero cegonha no pão. O que me cansa, as minhas redes de borboletas não ultrapassam as chaminés.

Chega a louca da casa com duas cabeças de galinha a despontar-lhe dos sovacos e pede-me ‘dá-me um moeda para eu a dobrar na virilha…’

 Mostra-me a sua língua momentaneamente alugada – suspeito que começo a ser o pano roto para a louca da casa.

O ar ao contrário de ti - censura-me - não fala pelos cotovelos. E eclode em mim uma fúria… sabe lá ela como eu ardo!

Às vezes tenho dela um terror animal, como desta coisinha durinha de roer, de Holderlin: “E não é um mal se algo/Leva à perdição e do discurso/ A viva voz acaba por se velar!”.

Havia na minha adolescência um craque do futebol chamado Victor Baptista, um pintas que acabou no presídio. Era um ponta-de-lança genial, acutilante como o canino da chita. Nunca o vi de língua de fora, ou só uma vez: no jogo em que perdeu o brinco da orelha e o ataque do Benfica parou durante dez minutos, para a chita esticar o rabo no ar, desmemoriado como um limpa-brisas. Aí vi, comprida e áspera, a língua da louca.

Hoje deitei-me com a louca da casa. Perguntou-me, já depenaste algum anjo. Respondi-lhe à queima-roupa: sempre que me vejo ao espelho. E ela indagou, em que nesga da porta.

Está sentada. À janela. Intermitentemente, num relance, faz panorâmicas pela rua. Debalde. Espera. Que espera? Uma carta que traga agarrada a si a pele da noite em que nasceu, interminável e impossível de ser interceptada.

Amo a louca da casa, nem me atrevo a dizer-lhe isso. Mas ela espia-me. Já tem os gravetos guardados para me deitar em cima e o fósforo está escondido debaixo da língua.

Há coisas que escusávamos de saber, par exemple, que Malebranche chamou à imaginação «a louca da casa».
Espero que lhe tenham vindo a ser cortados rente, à medida que nos esquecemos dele.



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