domingo, 22 de julho de 2012

FRANCISCO BRONZE: AS MÃOS E OS FRUTOS


Teve lugar este ano em Abril, na Casa da Cerca, em Almada, uma exposição de Francisco Bronze. Nessa ocasião, para o álbum que então saiu, com reproduções de pinturas e poemas escrevi então o prefácio que posto em baixo.
Só agora coloco o texto no blogue porque não havia até aqui arranjado as imagens que queria. Finalmente consegui algumas, chegando o momento de divulgar o trabalho deste imenso pintor que, por felicidade, foi das pessoas mais influentes na minha vida.
Encontra-se uma enorme galeria de trabalhos seus, dos anos 60 aos mais recentes, com centenas de quadros, em franciscobronze.net



à memória da Teresa Lajinha

1

Entre os meus quinze a dezoito anos, em Almada, o Chico era a figura a conhecer ou a rejeitar. Havia um terceiro termo: conhecê-lo para discordar dele. Toda a minha geração - enfim, aqueles que entre nós não haviam escolhido a hipótese de rejeitar, tendo o Chico como figura ilustrativa, qualquer pendor intelectual -, cresceu contra o Chico, a favor dele, ou, tomando-o como referência, adestrando a pose da equidistância.
Creio que, a haver uma pequena história intelectual da cidade de Almada, só houve uma segunda figura que concitou as mesmas raivas e paixões e moveu uma igual influência, o Joaquim Benite, com o Teatro de Almada. Para tudo o resto – a discussão política, os movimentos artísticos, o riso e os afectos - o Chico foi, para várias gerações, uma das âncoras da cidade. Pois discordar do Chico, por exemplo, era ainda ser um satélite na sua orbe.

Algo os separava, o Chico do Benite: o Joaquim queria ter a influência, exercê-la (o teatro exige meios e algum traquejo político), o Chico nunca quis ter influência, foi colocando de lado essa veleidade e rompendo com todo o tipo de dogmatismo.
Eram tempos de paixão, de emoções vividas a preto e branco. Não creio que as pessoas, nessa altura, enfronhadas ainda na enleada arena política que incandesceu o primeiro lustro após o 25 de Abril, estivessem preparadas para a súbita postura do Chico: uma leve ironia matizada de compreensão (o Chico procurou sempre rir mais com os outros que dos outros), uma racionalidade escorada na emoção, uma crença manifesta e vivida na superioridade da consciência individual sobre as deslocações de massas, uma certa atitude holística, um despojamento a roçar o ascetismo, uma abertura para o diálogo que sobretudo conseguisse levar os interlocutores a pensar contra si mesmo, e um labor continuado, tanto o artístico, como - o que na altura parecia suicidário – o de um aurático estado de «isolato».


Quem vai à Brasileiro do Chiado encontra aquele quadro do Nikias Spakinakos que reúne vários críticos em torno de uma mesa: o José-Augusto França, o Rui Mário Gonçalves, o Fernando Pernes, e o Francisco Bronze. E muita gente se interroga, mas quem será aquele tipo da barbicha?
Porque o Chico, depois de ter sido nos anos sessenta, princípios de setenta, um dos críticos mais temidos da praça, fez a seguir uma travessia no silêncio e no anonimato, realçado primeiro pela militância política, e, após a sua renúncia às lides revolucionárias, pela sua entrega à arte como única forma de contacto e de auto-conhecimento, mas numa obstinada disciplina que o afastou durante décadas do circo mediático – aliás, coisa que lhe é insuportável. Daí o seu relativo apagamento, isto é, a sua passagem intervalar, ao mesmo tempo que ia amontoando no seu atelier milhares de quadros, esculturas, colagens...

Eu conheci o Chico com dezassete anos, já então com veleidades de poeta e alguma curiosidade para a arte, e compreendi que o Chico era o amigo a reter. Tive a sorte de ter sido adoptado e de me tornar um frequentador da sua casa e da sua mesa de café. Com ele discutia livros, arte, a poesia, o vinco da beleza em todos os seus contextos, inclusive o feminino, as minhas diatribes e expectativas literárias, os projectos dele, numa partilha constante. E ainda hoje tenho o prazer de, sempre que arribo à cidade, ser a dele a primeira morada que visito.


Dizer o que lhe devo não caberia num prefácio, digamos que retenho, entre milhares, de coisas que ele me passou e me fizeram crescer, três descobertas essenciais: James Joyce, os metafísicos italianos, sobretudo, Carrá, e Cesare Pavese. Mas nada disto teria carburado sem o diálogo, perfurado de confidências e iluminações e isento de indulgências, pois o Chico não faz da amizade uma suspensão da crítica.
E aprendi com ele algumas coisas essenciais:
- a gratuidade da arte, no sentido que lhe deu Steiner: «a dignidade do homem consiste também na inutilidade, no facto de que não é rentável um grande pensamento», o que a torna algo que exige mais do que dá e cuja fidelidade é o verdadeiro ganho;
- a não ter receio do isolamento intelectual;
- a acreditar que a expressão artística tem um nível freático que nos liberta do condicionamento das modas e linhas epocais; sendo muitas vezes a contra-corrente do que a espuma da esfera da comunicação impõe;
- que muitas vezes é na duração que a verdade de uma expressão se revela. Como Rilke disse melhor do que ninguém: «Para escrever um só verso é preciso ter vivido muito, sentido, experimentado, é preciso ficar sentado ao pé dos mortos, etc.»

E talvez esta citação seja a melhor porta para a deriva que se segue. 
2
A pintura do Francisco Bronze tem vindo a ser digitalizada e colocada num site, nos últimos anos. Diga-se, previamente, que o que lá tem sido revelado ultrapassa em muito o que eu esperava e mostra quadros, linhas de trabalho, aspectos estilísticos, técnicas, suportes e pulsões, que desconhecia. O que me fascinou e entristeceu a um tempo, dado que a imagem que se tem do trabalho do Bronze é demasiado redutora face ao exposto e à diversidade que ali se denota. Diversidade que dificilmente será abarcada numa exposição antológica. Era preciso uma exposição só com os desenhos a tinta-da-china ou esferográfica, uma exposição das colagens, outra da escultura, etc. Vejam-se os resultados e processos de Eu vim do pó das Estrelas, Tacto descendente, No atelier, Desproporção Harmoniosa, Cruzes do Gólgota ou Nocturno – parecem pintores diferentes, apesar de, simultaneamente, haver uma extrema unidade na obra de Bronze.
Por isso, abaixo, vou tentar ater-me às imagens deste livro.
O abandono da prática da crítica pelo Bronze, em 1975, e o seu inesperado distanciamento da compulsão para estar à la page, e dialogar ou acomodar a sua expressão ao passo da novidade, acabou por desembocar nesta ironia: o tempo deu-lhe razão.
Quando o Francisco Bronze abandonou a crítica, se não me engano (escrevo este texto a 10 000 km, sem arquivos nem, momentaneamente, net comigo), em Portugal, a Pop Arte fenecia, e os Happenings e a Arte Conceptual começavam a ser falados.

                                                                Quarto Minguante
O Chico isolou-se, fechou-se no seu canto, e desatou a pintar, com disciplina e entusiasmo. O que conta não é o enunciado do vento, é o vento, avisara Bataille.
E o pasmo sucedeu-se: o feroz crítico abandonava as vanguardas e não só fazia fé no cavalete e na pintura – algo absolutamente a ficar fora de voga, naquele tempo – como pintava quadros que, a faltar outra definição, indiciavam o regresso ao “figurativo”, com reminiscências neo-clássicas eivadas de um «irrealismo» visionário”. O que devia parecer profundamente reaccionário aos olhos de então. Outros pecados se somavam:
- uma quantidade “anormal” de auto-retratos (num período em que a influência do estruturalismo ainda era dominante e a hipocrisia do decoro – tudo tinha de ser metáfora, transferência, impersonalidade, ausência de pathos - campeava no pensamento artístico da época),
- o uso da citação e da auto-referência artística: nele, a arte fala da arte: os renascentistas, a pintura espanhola muito El Greco, Goya, Frederich, os metafísicos italianos, mas também Matisse…  
- o que não invalidava a busca de um certo naturalismo dos sentidos, tão presente na corporalidade da representação dos objectos, na tangibilidade das cores, etc.;
- uma certa noção cenográfica da pintura,
- e, pecado complementar, a feição mais abstracta de que o Chico fazia uso nas colagens, nos “antípodas” da sua pintura – num país tão pobrezinho que não consegue conceber duas ideias sobre a mesma pessoa -, o que fazia incorrer no crime do ecletismo.

O que se passava é que o Francisco Bronze se tornara, uma década antes disso se começar a notar e discutir em Portugal, pós-modernista, movimento que recuperaria, precisamente, tudo o que lhe provavelmente lhe seria apontado como defeito. Só que no Bronze esses defeitos e qualidades eram interiores e não habilitação mimética, consoante a conveniência estética. Sem ele mesmo se dar conta, uma dobra no tempo tornara-o um pioneiro.
Este livro reúne quadros e poemas. O Bronze foi sempre um leitor apaixonado de poesia e em olhando as reproduções é nítido o que atraiu os poetas. Há em muitos quadros presentes neste livro uma melancolia, uma tristeza, uma nocturnidade, que se prendem com um pendor metafísico e mistérico, e emprestam a alguma desta pintura um halo poético vizinho de algum simbolismo (- mas tenha-se permanentemente que este é um aspecto do Chico, entre outros). Creio haver, neste particular, uma identidade subterrânea entre a pintura do Bronze e a poesia do Rilke - detecta-se em ambos uma semelhante presença de anjos, frutos, ruínas, a par de uma similar tangibilidade dos crepúsculos, da noite, e mesmo dos aspectos solares que apresentam a luz como uma experiência da matéria: em ambos o diáfano é um realce do real, ou uma janela para outro real.

E radica, às vezes, nesta atracção fatal pela poesia um dos riscos que rondou a sua pintura: vejamos o quadro Cruzes de Gólgota, de que gosto bastante. Neste quadro, como noutros com motivo (Gadanha, por exemplo), há uma tentação alegórica que noutros pintores, a meu ver, desembocou numa esterilização artística. Falo especificamente de Lima de Freitas e Noronha da Costa. Na minha opinião, o que fez o Bronze ultrapassar de forma pujante esse risco foi a compulsão material da sua pintura. Verifica-se nela uma tensão entre o que não é pictórico – o tema, o poético, a procura de imagens cristalizadores de arquétipos/mitos – e o diálogo da cor consigo mesmo, com as texturas e ritmos, que rompe os “esquemas”, a obediência ao que o quadro queira dizer. Acontece-lhe o mesmo que a Carrá: o cromatismo, as formas totalmente imanentes que emergem no quadro sobrepõem-se à razão, ao ditado do título. E assim esquece-se o quadro de decorar o tema e vê-se a pintura devolvida à pintura.
Quarto Minguante, por exemplo, é o exemplo de um quadro que se fez a si mesmo, feliz porque totalmente imanente.
O Bronze é um dos pintores que conheço que com mais felicidade assimilou a famosa formulação do Baudelaire (que tem dado azo a tantos comentários), segunda qual a arte deve ser metade nova e metade eterna. Desiludam-se, entretanto, os farejadores do esoterismo, a meu ver a frase de Baudelaire corresponde àquilo que Deleuze preconizava quando defendia que começamos sempre a meio: isto é, fazemos parte de um fluxo.
Termos consciência disto conecta-nos com o que nos precedeu e o que se nos segue, de que somos o elo vibrátil: o presente do Incondicionado. Realismo quântico.
Portanto, no Bronze a arte enfeixa, enxerta o acontecimento (o inesperado, o novo, o estranho, o que desencadeia o movimento do olhar) na variação face ao fluxo (à tradição) - ou simplesmente ondula. Do que provém a importância da memória como chave para a sua pintura (e a memória pessoal e a da arte fazem corpo no corpo do pintor: o que legitima os auto-retratos) e leva Bronze à prática da citação, que incorpora como matéria elementar, estando esta tão presente como as imagens emocionais em que o pintor recria as células da memória. Evoquemos aqui três quadros presentes neste livro: Miragem (onde se adivinha a figura de Velásquez, ao fundo na porta), Leda e Mona Lisa.
Vejamos agora outro trabalho reproduzido neste livro: As Nuvens. Inscreve-se nele o aspecto cenográfico de que falo atrás: uma simultaneidade de tempos, como se a imagem nos quisesse mostrar, isolando as partes, a sucessão na duração. Em muitos quadros do Bronze, desde os anos 70, o enquadramento é invadido por “janelas” que abrem outros planos no plano, sendo o quadro um palimpsesto cujas margens não coincidem. Atrevo-me a interrogar se a esta abertura de janelas no plano, que às vezes tanto introduzem “outros lugares” como rompem sintaxes, não a encontrou Bronze na observação de El Greco, embora naturalmente a prática e a técnica da colagem também tivessem sido determinantes. Com esta técnica quis o Bronze introduzir o tempo no plano, dado que a pintura não contempla a sucessão temporal, e, no seu efeito desconstrutor, a colagem tende mais a desfazer as fronteiras: entre o real e o sonho, as imagens e a memória, o figurativo e a mancha cromática.

Extraordinário despaisamento que nos restitui de novo à poesia.  
3
Como já referi, o Bronze tem mantido ao longo de toda a sua vida um diálogo com a poesia e sempre se interrogou sobre a elucidação do poético. Para este livro encontrou a cumplicidade de três poetas, Manuel Correia Fernandes, Sónia Grave e Maria Inácia Reis.
Cada um dos poetas escolheu o seu painel de imagens e trabalhou a partir delas. Como escreve Sónia Grave: «Esta tela tem uma voz que se ouve no silêncio» - e estes poemas entregam-se na generalidade com felicidade a essa escuta.
O resultado tem muitas zonas de equilíbrio, embora, como seja normal num livro desta extensão e com três vozes de densidades, estilos e dicções muito diferentes, haja poemas mais conseguidos que outros e, mesmo no espaço de cada poeta, desiguais níveis de encontro da palavra com a imagem.
Porém, se nem sempre se desencadeia o engate, manifesta-se continuamente nestes poemas um labor digno, honesto, bem ilustrado nestes versos luminosos de Sandra Grave:

«Medos certos
Erros correctos»,
que transforma este álbum numa morada apetecível.

Sucede, ademais, que se multiplicam pelo livro os momentos plenos de apuro poético:
«(…)

Torno-me translúcida.
Pura de mim.
Desejo que o cinza da vida,
não se infiltre.
E o meu ponto de luz
me recorde.»
(Sónia Grave, Sou);

«(…)
Cai a paz,
Doce, sedutora,
Acorda a aurora
E em bicos de pés
Vai-se a lua embora
(Manuel Correia Fernandes, Madrugada de Esplendor)

 «(…)
esculpi um rosto
que a chuva desfez
o nome que inventei
gravei-o no pó
posso até dançar nos salões do rei
mas por entre as multidões
caminho só.»
(Maria Inácia Reis, Rosto Precário)
e que são inúmeros os poemas plenamente realizados, o que o leitor descobrirá com prazer.
Os três poetas são, como disse, vozes de distintas dicções, tonalidade, e temperamentos: Sónia Grave evoca-me a Irene Lisboa, Maria Inácia Reis tem um sabor rilkeano, e Manuel Correia Fernandes explora um veio mais tradicional a que não escapa a rima:
«Na doca de meus dedos
Estaleiro de ossos, carne e pele
Meu barco adernado expele
Opróbrio de morrer à beira d´água
De cavername dorido
Porão vazio, cheio de mágoa
Por decreto preterido
(…)», Na doca de meus dedos

 O que interessa ressalvar é a generosidade do projecto e a qualidade do resultado final, que me deixa enciumado por não ter colaborado também nele a outro nível. Talvez outra oportunidade nos junte a todos, seria um diálogo muito produtivo, cheio de pontos de luz:
«Solidifiquei a ponte.
A vida sem pressa»
                            Sónia Grave, Ponte.
«(…)
e surgirá intacto o osso da palavra
lambido pelo fogo
limpo de toda a ganga»
                             Maria Inácia Reis, Poemas Mortos

«Há uma luz misteriosa que me sustenta
Talvez farol procurando o seu lugar»,
                                      Manuel Correia Fernandes, Alucinação.
4
Quando eu conheci o Bronze, eu teria dezassete e ele quarenta. A nossa diferença era manifesta. Agora continuam-nos a separar os mesmos anos mas nos meus cinquenta e três anos descubro-me espantosamente parecido com o pintor no auto-retrato com um travo de auto-paródia (porque destituído dos óculos de massa que fazem parte da identidade Bronze, da sua própria visão artística?) a que o Chico chamou Exausto (- até na falta de cabelo).
Afinal, sei agora porque uma empatia nos tornou amigos: aquele retrato é já o meu - vou enviá-lo para todo o lado como meu. Não lhe digam, é um segredo nosso.





2 comentários:

  1. não sei se o António viu a exposição na Casa da Cerca, mas na minha opinião ela valorizou muito a obra do "Xico" Bronze, pela forma como foi organizada, com tudo, desde os desenhos a lapiseira e a tinta da china, aos óleos.

    em relação ao resto, ele é realmente uma pessoa especial, no panorama cultural almadense, das que vale a pena conhecer.

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  2. Não vi, meu caro Luis, eu estou em Moçambique, e fiquei contente por se ter feito alguma coisa, mas devia ter sido um ciclo e não uma exposição. Mas fez-se, foi bom.

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