terça-feira, 24 de julho de 2012

JANTAR COM ESPINOSA E ALGUNS AMIGOS II/ ELIRAZ

                                                                              sean scully

Mais um capítulo do livro Jantar com Espinosa e alguns amigos, de Israel Eliraz, com tradução minha:

III

Alguém toca no quarto do lado



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Lá ao fundo

paira a música (da qual


não sabemos se ela é

uma mosca do país


ou uma mosca infinita).


A música, para se manifestar

não precisa senão

de si mesmo.


E ondula desabraçada sobre

o continente da mesa


as colinas dos pães, as plantações

de aipo e alface,


o vale do vinho e

o vendaval do mel.


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mas

a música


que vai e vem

«unicamente com o fogo»


leva-nos a um lugar (a-

colá!) que conheceremos

no momento de lá chegar.


Entretanto, imaginemos uma algibeira

metida para fora


uma talhada de fruta

ébria


uma língua afiada que não passa

de um sistema de ventilação

sem sonho,


etc.


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dobrada em dois

a música surde

ao fundo do centro desconhecido


como a matéria

inextinguível no fulcro

da lâmpada


e atrai, intenso, um cheiro a açúcar queimado.


Nós velamos a música

cada vez mais

lentamente


ela abre-nos um lugar

de referências:


para saber não tenho necessidade

de saber que sei


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e quero compreendê-la

quando ela se agarra


às coisas que a contém


como se as vozes

fossem as fibras


duma matéria brutal


onde a alma desabrocha

como o vermelho

no amor.


Como se dissolve a arrogância

do vermelho à beira


de tornar-se a coisa verdadeira


(que é eterna, constante,

inalterável)


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os sons são objectos infinitos

que se multiplicam e te seguram.


Quando dizes: é preciso ver

as coisas de perto


tu afastas-te para o dizer

(até onde?)


até aparecer uma cidade como

uma taça de tachas

de cobre


e Espinosa, que nos assegura:

pode levar-se acudimento

à tristeza


meramente o vermelho ao fim

da pura cadenza

  
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é uma sede que se agrava

até ao insuportável:


a coisa verdadeira.


Do outro lado da cozinha

urdem-se coisas.


Uma realidade sólida em

linhas selvagens


símil à urgência na substância

da palavra.


A música, mão flébil,

espalha os flocos:


sejam bem-vindos

ao lar do fogo.


À parte,


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alguém toca na divisão vizinha àquela onde alguém toca


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por um instante ambos parecem executar em uníssono


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a mesma melodia. Na sua interpretação eu capto a que ponto


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eles conhecem a forma. Conheço todos os gestos


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de onde eles extraem esta beleza. Um toca um instrumento


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que eu identifico, e o outro um instrumento que me escapa


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eis que a música pára, a luz que alumiava a casa apagou-se há muito


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eles juntam as suas mãos sem estar sentados lado a lado


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quando é que eu disse

à musica


traz recitativos sagrados e toca-

-me com um gesto subtil?


Amar-te-ei como teria podido

amar Deus antes dele

ter criado as coisas.


(Que quer dizer aqui coisas?)


Só será o que ela

pode ser


(um rectângulo vermelho assinala

uma liturgia rural)


um saco de imediato no ar

como desfecho


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o meio do verão fica mesmo

no intervalo de

dois gestos


ou antes de duas poses

numa dança lenta


(Bougaku, talvez).


A ladainha duma canção local.

Litania vaga, um

momento raro.


Naquilo que nós entendemos

passa-se tão pouco


e bloqueia-se na matéria

(guarda-jóias de um enigma)


«a necessidade de capturar»


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apenas esperar perto

do centro


chamamos-lhe inquietude

ou tristeza


«até a luz se apaga

na boca».


Que é o que nos escapa

e nos vira as costas

na música?


Instrumentos, pesados, entorpecidos, onde

se engendram outros instrumentos

simples, necessários


ponho-os ao lado.

Nada está dito.


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enredar-se em torno duma pausa

como diante dum feixe de água.

Encontrar


«o tempo forçado duma

marcha ritual».


Esperar e escutar

o tempo tornar-se

cozinha


(azul escuro) onde todos os meus

amigos ficam perto de mim,

sobretudo os mortos.


Aqueles que nós amamos (sem

desfalecimento) amam-nos.


O silêncio, uma espécie de saída


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