terça-feira, 10 de julho de 2012

O PÁSSARO LÁGRIMA DE KEROUAC

                                                                        noé sendas


O meu sogro era oftalmologista e um intelectual de Lourenço Marques, com algumas histórias a seu crédito. Veio a independência e ficaram, muito por pressão da esposa que se converteu ao novo espírito. A história que lhe prefiro é esta: estando um dia a meio de uma comezaina, na esplanada do Estoril, é interrompido por um popular que o vem abraçar efusivamente, dr. Cordato, Que prazer conhecê-lo, o dr, tem umas mãos santas… é o melhor curandeiro de que há memória nestas terras… O meu sogro aguentou “o assalto” como pôde, a esposa é que franziu o sobrolho quando ouviu dizer, Ainda hoje me espanta como o dr. tirou os olhos ao meu irmão, os lavou num copo de água fria e depois os enfiou outra vez já curados… o dr. faz milagres…Retirou-se a grata criatura e a dra. Helena, uma marxista-leninista de ocasião, não resistiu a censurar o marido, Como é possível alimentares esta credulidade? Ouves estas patranhas e não as desmanchas. Resposta rápida, num viés goês: …os mitos não se devem desmanchar.  


Leio:«…podem encontrar-se os mitos em pristina pureza», e vejo como o desusado adjectivo, pristina, acrescenta de facto pureza à pureza, um atributo que acorda na qualidade a sua condição vibrátil. É este gozo da língua que se tem vindo a perder com o furor da comunicação. Comunica-se mais com muito menos precisão, sem escutar o pulso interno da língua.


O drama de Sísifo é que teima em manter-se
de pé, ao lado do seu calhau, de pé
sobre a colina. Se Sísifo se deitasse
distrair-se-ia com as estrelas e esqueceria
que é o cão de cego daquela pedra.
E se por seu turno deitasse a pedra,
ao seu lado, em vez de a manter de pé
como um ovo ensimesmado,
ouvir-lhe-ia então ao fundo o coração
e compreenderia que convém comer
com as mãos e não as mãos - o engano
em que anda desde o princípio do mundo.

A saliva dos mortos é o som das palavras que tu julgarás ouvir pelo resto da tua vida – respigou intratável uma avó que não duvidava de nada e muito mal me reservava. Às gotas de veneno não se fica incólume.


Quando a ave o atravessa fica o vazio pleno, vivo?
É uma pálpebra que se fecha ou outra que se abre?
Empluma-se o espaço ou, ainda que domesticamente, algo o perfura?
Longe de toda a metafísica Luís XV limitou-se a disparar

Quando o gorrião interceptou a sua mira.

Fazes uma tosta mista, pede a minha mulher da cama,

Sonolenta, mais a pender para os frutos que para as asas.

A minha amante imaginária, pelo contrário, é ciumenta

Dos sonhos do seu prisioneiro.

O pássaro-lágrima do Kerouac bate à minha janela.

Tem mãos de croupier.


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