peónias e canários, hokusai
Passei
tarde a ler Jean-Ives Leloup, um sage que interpela sempre o meu ateísmo não sistemático.
Um prazer que me transmitiu um poema, redigido na contracapa do livro:
«Durante a vida é importante cativar o desconhecido.
Como diz o Pequeno Príncipe, não se trata de domesticar a raposa, porque ela foge.
Trata-se de cativá-la, porque ela virá e ficará».
Belo naco.
«Na tradição zen diz-se que o momento de despertar
está próximo quando, ao nos inclinarmos sobre um espelho não enxergamos a nossa
própria imagem. É preciso ter cuidado porque essa ausência de imagem pode ser
tanto um sinal de despertar quanto um sinal de esquizofrenia».
Graças a Deus (brinco) nunca experimentei tal
desprendimento, mas atravessei uma fase recente na minha vida em que me sentia
invisível em relação ao meu meio ambiente, como se estivesse fora dos eixos da
realidade e não passasse de um fantasma em movimento. O espantoso é que isso não me causava o
mínimo de angústia ou perturbação. Sentia-me simplesmente um astronauta apaixonado pelo
mundo mas sem necessidade de contacto.
«O perigo, para aqueles que têm um caminho
espiritual, não é o apego às riquezas materiais mas o apego aos estados de
consciência».
Neste erro tenho caído. Apego-me facilmente a uma
liquidez medidativa, com calção de banho e tudo. Delicio-me num encontro íntimo
com os meus estados de consciência, esquecido de que a consciência é um
espaldar sem uma verdadeira parede que o sustente nas costas, erguido por si
próprio numa sugestão hipnótica. E às vezes cai, comigo agarrado, entalando-me
os dedos no chão.
«A física lembra-nos que somos a poeira das estrelas».
A coca de Deus?
Diz o Qohelet, na Bíblia, que não há nada de novo
sob o sol, e de facto em tal nome só vejo a omolete que sonha em ser ovo estrelado,
com a gema ao meio e a clara circunvolução dos planetas em torno.
A morte de Gref Durckheim, que barafustou como um
danado à ideia de morrer, e se mostrou «completamente humano, com toda a sua
impaciência e cólera, libertando-nos assim da imagem que tínhamos da morte de
um sábio, de uma morte sublime», diz Leloup, ameniza-me o choque que tive ao
ler o testemunho de António Valdemar sobre os últimos dias de Vitorino Nemésio,
que foram de paranoia e alucinação, temeroso dos fantasmas que o assaltavam. É
muita pretensão querer que o outro aceite a morte que ainda não nos rondou.
Escrevia com os olhos vendados.
Habituou-se a não saber por onde ia,
A aceitar nas trevas a sua parte de perdão.
Nem se lembra já como chegou ao método.
Só sabe que tem a pele em ferida
Quando tira a venda e que esses tecidos só saram
Em contemplando o rosto da amada.
Escreve com os olhos vendados –
É a sombra do amor quem o guia.
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