terça-feira, 3 de julho de 2012

REMINISCÊNCIA E SONETO

Nove da manhã. Compro numa banca de rua o III volume da obra «As Maravilhas Artísticas do Mundo», de Ferreira de Castro, e corro para um café na ânsia de banquetear-me toda a manhã (- esquecido já do livro que levava comigo).
Abro-o ao acaso nas primeiras gravuras, umas péssimas reproduções a preto e branco. Deliciam-me o carácter escultórico dos rostos em “A descida da Cruz”, de Fra Angelico, e a insinuação estrábica do cónego Van der Paele, em Van Eick, e pasmo com a aparição de Delaunay ao fundo da “História de Santa Cruz”; depois volto a página e dou de chofre com a Estátua de Lourenço de Medicis, de Miguel Ângelo, conhecida por O Pensativo. É aí que vejo, pela primeira vez visto… aquele dedo encaixado em arco no lábio superior, que encosta o nó ao septo nasal, antes de pender, absorto, e ilumina-se-me num flash: mas este é o gesto preferido do poeta João Miguel Fernandes Jorges, o sinal de que ouve os outros ou congemina um verso supersónico que lhe sulca de algodão o ecrã azul da mente.
Foi este gesto que desatei a imitar, anos depois de deixarmos de privar (em homenagem…), até que me dei conta e passei a cultivar os meus tiques, etc., etc.
Não sei se o João Miguel terá consciência deste decalque (ou da coincidência), ou talvez, sim, que nunca deu nó sem se inteirar previamente do nome do enredo.  E interrogo-me sobre qual será o justo peso, voluntário ou inconsciente, do que imitamos na construção da nossa identidade. E terá importância o modelo que escolhemos…
Eu, por exemplo, verto o bule com a mesma inépcia com que o fazia o Eduardo Prado Coelho, o mesmo pasmo repetido e insolúvel ao ver como o chá entorna e alastra. Inclino o bule no mesmo ângulo, espetando um impotente mindinho que sublinha os estragos, e só introduzi de meu um látego nas narinas face ao irremediável.
Hei-de escrever um manifesto em defesa de tudo o que imitei, antes que venha um chato lembrar-me o que eu aludia ou o que omitia com o vocabulário ou até com a anatomia dos meus gestos.
10 SONETOS PARA O SÉCULO XXI, 1

(operação stop)

Perícia venatória: gosta de selos
E de minete o polícia
Com crachá que me incita,
Num desalmado princípio realista,

A comprar-lhe a minha multa.
Tal como países terceiros resgatam
(Com que clemência?) as Soberanas
De primeiros e segundos, capacito-me

Que de pátria para pária
A diferença está na dívida
E no tipo de pomo corrompido

Que aceitamos na taça de fruta,
A meio caminho da emaranhada
Luxuriante queda abrupta.



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