O conto do Dalton Trevisan que há anos dou
nas aulas de guionismo, no intuito de tentar explicar aos alunos que a acção
não resulta exactamente das corridas de carros, que podem ser a coisinha mais
fastidiosa do mundo, mas da intensidade dramática, duma condensação. Por outro
lado, ninguém é tão concreto, tão visual nas suas descrições, como o Dalton, o
que é também uma escola para a escrita de guiões. Mas não se explica que um ovo
é oval a quem não quiser acreditar, não é? Porque há uma diferença entre o que
as coisas são e aquilo que nós queremos acreditar que sejam. E por isso eles
continuam a preferir o tiroteio ou um arraial de pancadaria para ilustrar a
acção. Pertence este conto ao livro Novelas Nada Exemplares. Diga-se ainda que o Dalton é inimitável, meus caros, é um osso que só dá para ele.
A
SOPA
Subiu
lentamente a escada, arrastando os pés. Estacou para respirar apenas uma vez,
no meio dos trinta degraus: ainda era um homem. Entrou na cozinha e, sem olhar
para a mulher, sem lavar as mãos, sentou-se à mesa. Ela encheu o prato de sopa,
colocou-o diante do marido. Olho vermelho de dorminhoco, o filho saiu do quarto
e atravessou a cozinha. O homem batia as pálpebras, embevecido com os vapores
capitosos. — Aonde é que vai?
O filho abriu a torneira do banheiro:
— Fazer a barba.
— Hora da janta. Vem comer.
Demorava-se o rapaz, torneira fechada. Com a toalha no pescoço, não olhou o pai.
— Não quero jantar. Sem fome.
O homem suspendeu a colher:
— Não quer jantar, mas vem para a mesa.
Todas as noites, esfomeado. Enchia a colher, aspirava o caldo de feijão e, fazendo bico nos lábios; grossos, tragava-o com delícia. O filho desenhava com o garfo na toalha de flores estampadas. A mulher, essa, contemplava o fogo, mão no queixo.
— Dar uma volta.
O homem sugava ruidosamente e, a cada chupão, o filho revolvia a ponta do garfo no coração das margaridas.
— Saiu agora do quarto, filho de barão! Mas eu... Quando me deitar de dia na cama é para morrer!
A mão do filho abandonou o garfo e não se mexeu.
— Volta cedo, não é?
A voz cansada da mãe, ainda de costas para a mesa. Não sabia ela que, ao defendê-lo, perdia a causa do filho? O homem esvaziou o prato e, descansando a colher, examinou as mãos enrugadas.
— Estas mãos — sacudidas de ligeiro tremor — de um velho!
A mulher apanhou o prato, encheu-o até a beirada. O marido retorceu as pontas úmidas do bigode:
— Você não come?
O filho contornava com o garfo as pétalas na toalha.
— Não estou com vontade.
— Depois o senhor vai para o quarto.
Cheirava a colher e sorvia a sopa, estalando a língua. O filho ergueu-se da mesa.
— O senhor fica sentado. Não tem pão nesta casa?
A mulher trouxe o pão. Ele não o cortava: agarrava-o inteiro na mão e mordia várias vezes; em seguida partia-o em pedaços, alinhado s diante do prato, atacando um por um, entre as colheradas.
— Volta cedo, não é, meu filho?
De novo a mãe, nunca aprenderia.
— Agora não vou mais.
O pai dizia a última palavra:
— Uma vergonha! O chefe tem de jantar sozinho. O filho preguiçoso... até para comer. A mulher — com seus brados retiniam os talheres — tem o estômago delicado.
Não se mexeu, curvada sobre o fogão.
— Olhe para mim quando falo com a senhora!
Ela se virou, a enxugar as mãos na saia.
— Depois de velha, melindrosa. Não pode comer com o rei da casa, que lhe sustenta o filho e lhe dá o dinheiro?
— Sabe por que não sento.
Os dois a olharam com espanto, nunca discutiu as ordens do marido.
— Sei não, dona princesa. Pois me conte.
Ele pedia, a colher no ar:
— Perdeu a coragem, que não fala?
Outra vez a mulher deu-lhe as costas.
— Só nojo de você.
Ele começou a soprar, manchava de borrifos a toalha.
— O quê? O quê? Repita, mulher.
A dona abriu o fogão, espertou as brasas, encheu-o de lenha:
— Nada espero da vida. Mas não posso te ver comer. Sei que é triste para a mulher ter nojo do marido. Você chupa a colher se fosse tua última sopa. Come o pão se eu fosse te roubar. Não sei o que fiz a Deus para esse castigo mais desgraçado. Fui boa mulher, ainda que tenha nojo. Lavo tua roupa, deito na tua cama, cozinho tua sopa. Faço isso até morrer. Me peça o que quiser. Não que me sente a essa mesa com você e tua sopa mais negra.
O filho abandonou a cozinha e desceu a escada. Os dois ouviram bater a porta da rua.
O marido encarou primeira vez a mulher. Baixou os olhos, cabelos de gordura boiavam no caldo frio. Erguendo um lado do prato, acabou o resto de sopa e lambeu a colher.
Encontrei o "Cemitério dos Elefantes". Como me tinhas chamado a atenção para o autor...
ResponderEliminarAbraço
Maravilhoso, cpmo todos os textos do Falton.
ResponderEliminarMaravilhoso como quase todos os textos do Dalton.
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